José António Moreira, Visão on line,
Cena 1
[Amplo plano de uma sala de reuniões modesta]
– Muito obrigado por me ter recebido. Chamo-me M. Pereira e sou o representante da O. nesta zona – disse, estendendo um cartão de visita ao gestor da empresa, enquanto se sentava. – Não quero fazer-lhe perder tempo e por isso vou direto ao assunto. O vosso contrato de telecomunicações com a nossa empresa está a terminar e gostaria de apresentar uma proposta de preço para renovação do mesmo.
– Não sei se sabe, mas a relação comercial que temos mantido com a vossa empresa tem sido um pesadelo para nós. Têm-nos cobrado valores que não constam do contrato; não há uma pessoa na vossa empresa a quem possamos considerar como interlocutor, pois estão sempre a mudar; temos uns milhares de euros a haver, esperando há muitos meses que nos sejam devolvidos. Por isso, não vale a pena apresentar proposta alguma. Vamos mudar de operador.
– Eu sei que as coisas nem sempre têm corrido bem. Os serviços centrais por vezes não funcionam como o desejado. Mas porque não nos dá o benefício da dúvida? – e fez uma pausa, que instalou um silêncio pesado na sala. – Eu passarei a ser o interlocutor que necessitam para resolver eventuais problemas … que julgo não irão existir. No cartão tem o meu número de telemóvel privado, podem ligar-me 24 horas por dia, 7 dias por semana.
– Peço-lhe desculpa, mas estamos decididos a terminar a relação. Os seus muitos colegas com quem contactei ao longo dos últimos três anos também prometiam o mesmo e foi o que se viu. Problemas e mais problemas. A única coisa que quero é que nos reembolsem as importâncias que cobraram em excesso.
– Aí está um pequeno problema – disse com um tom de voz mais baixo, quase como se não quisesse ser ouvido por terceiros. – Eu não devia dizer isto, mas o facto é que se colocarem termo ao contrato dificilmente irão reaver esse montante que reclamam. Irão ter de acionar a O. em tribunal, a Justiça é lenta … – e o silêncio imperou na sala, desta vez como uma ameaça. – Acredite em mim. Eu apresento-lhe uma proposta imbatível face à concorrência. Algo na ordem dos 275 euros por mês de assinatura do serviço, para um contrato de fidelização mínima de 24 meses. Não se vai arrepender.
Um período de silêncio, incómodo, em que se percebia nitidamente que o gerente ponderava o que seria melhor, se perder o montante que reclamava ou se arriscar a mais uma relação conflituosa durante muitos meses. O facto é que sabia, por experiência própria e de contactos com colegas, que as restantes empresas de telecomunicações móveis não tinham atuações muito diferentes. Quebrou o silêncio, dizendo:
– Entregue-me uma proposta. Mas tem de ser completa, clara e conter informação específica sobre o modo e tempo em que procederão ao reembolso. E, claro, tem de ser melhor do que a que já possuo.
– Assim farei – disse o representante, com um sorriso de face inteira. – Verá que não se vai arrepender. Este é o primeiro passo de uma nova fase da nossa relação comercial.
Cena 2
[A funcionária da contabilidade bate à porta do gabinete do gerente]
– Dá-me licença? – e entrou na divisão relativamente pequena.
– Diga Patrícia. Que se passa?
– Chegou a fatura mensal da O. e não me parece estar conforme com o contrato que foi assinado há pouco mais de um mês – e estendeu-lhe três folhas cheias de números, encimadas por um colorido logótipo.
– O quê?! – exclamou, levantando-se de um salto, enquanto lia as folhas avidamente.
– Não só o valor da assinatura é maior do que o referido no contrato … quase o dobro, como o valor do montante que nos devem do contrato anterior não nos foi creditado. Apenas o deduziram, parcialmente, na fatura.
– Ligue-me de imediato ao sr. M. Pereira, para o seu telemóvel privado.
– Já tomei a liberdade de ligar várias vezes e não atende. Já liguei também para o outro número que ele forneceu e não tive mais sorte.
O gerente deixou-se cair na cadeira, a fatura na mão, o rosto contraído.
– Ligue à O. e peça para a colocarem em contacto com o sr. M. Pereira. Diga-lhe para passar por cá o mais urgentemente possível.
Cena 3
[A mesma sala de reuniões, o gerente e um outro indivíduo sentados a uma mesa]
– Vou directo ao assunto – disse o gerente, em tom irado. – Há mais de um mês que os nossos serviços administrativos não fazem outra coisa além de tentar chegar ao contacto com um representante da vossa empresa. Sem sucesso, até hoje. A nossa paciência esgotou-se! – e o seu tom de voz, que mais se assemelhava ao de um berro, espelhava a raiva que o consumia. – Caí mais uma vez num logro, mas não voltará a acontecer. Quero proceder à resolução do contrato.
– Peço-lhe desculpa, por só agora cá ter vindo. O sr. M. Pereira já não trabalha connosco e daí o atraso. Quanto ao contrato, lamento dizer mas não o pode resolver. Tinha 14 dias para o fazer, após a assinatura. Se o resolver agora terá de pagar os restantes meses até perfazer os 24 previstos no contrato como período de fidelização.
– O quê?! Mas como é possível só ter 14 dias para resolver um contrato cuja primeira fatura me chega às mãos ao fim de mais de um mês passado sobre a data da assinatura do mesmo?
– É a lei que temos – disse com voz calma, contrastando com o nervosismo demonstrado pelo gerente. – Os 14 dias são o prazo previsto na lei. Mas, por favor, acalme-se. Eu estou aqui para tomar conta da situação. A nossa empresa não tem qualquer interesse em ter os seus clientes insatisfeitos. Vamos ver o contrato, para procurar perceber a natureza do problema – e pegou num conjunto de fotocópias, agrafadas num dos cantos, que analisou demoradamente. – Eh pá! Como é que foi assinar isto? Então não colocou uma cruzinha nesta quadrícula? Não devia ter assinado sem isso …
O gerente estava em choque, silencioso, olhar vago perdido na parede branca à sua frente.
– Pois é, vamos ter de corrigir este contrato. Não se preocupe, eu irei fazer todo o possível para resolver o problema. Vai assinar este impresso, para regularizarmos a situação, e dentro de um ou dois dias contacto-o com notícias.
– Mas isto é um novo contrato! – exclamou o gerente.
– É um proforma, para atualizar o contrato que assinou e não devia ter assinado.
O gerente pegou na caneta e rubricou a folha que lhe era estendida. Nem sequer quis pensar que assinar um novo contrato implicava recomeçar a contagem do prazo de fidelização. Estava cansado.
Cena n (e última)
[Um ecrã negro com o “epílogo” escrito em letras brancas]
O gerente consultou um advogado que o aconselhou, a partir de experiência pessoal semelhante, a esquecer a situação e deixar o contrato correr até ao final, sem assinar outro qualquer documento.
Nunca conseguiu contactar mais de duas vezes com o mesmo representante da operadora de telecomunicações, pois ou já tinham cessado o vínculo laboral com esta ou tinham sido deslocados para outras funções.
No final do contrato, esqueceu o reembolso a que tinha direito e fez um contrato com outra operadora. A natureza dos problemas com que se defrontou não foi muito diferente dos ficcionados no ‘filme’.
Disclaimer do argumentista: Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência.