Carlos Pimenta, Visão on line,
1. Muitos órgãos de informação apregoaram recentemente que a economia paralela no nosso país em 2010 era de 20% do PIB, acrescentando que feirantes, senhorios, taxistas e mecânicos estão entre os que mais fogem ao fisco. Não o fizeram por iniciativa própria mas reproduzindo acriticamente um recente estudo encomendado pela Visa Europa.
Será mesmo assim?
Retomemos o estudo publicado que deu lugar a essas notícias. Nele encontramos, de forma subtil ou aberrante, constatações que são, pelo menos, de gerar dúvidas e desconfianças. Citemos algumas:
a) Há uma imprecisão temporal que não é despicienda: os cálculos estatísticos referem-se a 2005, algumas análises por inquérito são mais recentes e o título da publicação data a aplicação do estudo a 2010. Quando estamos a trabalhar com realidades muito sensíveis às conjunturas, e neste entretanto se revelou a crise de sobreprodução que actualmente vivemos, quiçá mais graves da história do capitalismo, estas diferenças temporais podem alterar significativamente os dados.
b) Por muita consideração que tenhamos pelo académico que fez as estimações estatísticas, não podemos deixar de manifestar a mais profunda estranheza pelos resultados obtidos. É de surpreender que todos os países apresentem uma diminuição de “economia sombra” entre 2002/3 (data de um estudo do mesmo autor para os países agora considerados) e 2005 (ou 2010?) que oscila entre 0,9 e 2,5 pontos percentuais. No caso português podemos categoricamente afirmar que não corresponde à realidade. A tendência foi de aumento e não de diminuição.
c) Os cálculos matemáticos têm de estar subordinados à realidade do que é observado, à consistência da explicação científica que os justifica. É muitíssimo duvidoso que a metodologia estatística utilizada no cálculo da “economia sombra” para um país permita a sua aplicação a subsectores económicos com o nível de desagregação apresentada no estudo.
d) O documento oscila entre duas metodologias e uma preocupação: mostrar que a utilização do cartão de crédito pode reduzir a “economia sombra”. As metodologias são a indirecta (que integra as estimativas referidas nas alíneas anteriores) e a directa. Esta passa pela observação das informações disponíveis sobre “economia sombra”. Por esta via analisa-se “o que se fala” e não o que escapa à observação menos atenta. Revela-se o restaurante que não passa factura, esquece-se as empresas fictícias, os “preços de transferência” manipulados e as operações com e entre paraísos fiscais.
Contudo, o grande problema é considerar que a evasão e a fraude fiscal não fazem parte da “economia sombra”. Na metodologia utilizada nada nos permite afirmar tal. Não há razões para “o mecânico que não passou factura para fugir ao IVA” estar englobado na “economia sombra” e não o estar as empresas que fazem operações fictícias entre países da União Europeia para receberem IVA (ex. a chamada fraude carrossel). Não há razões para o taxista ser considerado agente de economia paralela e não o ser a empresa que factura comissões a falsas empresas e faz sobrefacturação para outras sociedades do mesmo proprietário, que estão localizadas em paraísos fiscais.
Acrescente-se, para além das considerações técnicas que justificam estes reparos, que se a “economia sombra” não englobasse a fraude fiscal a economia não registada em Portugal não se situaria na casa do 20%, mas certamente dos 50% ou 60%, o que seria absurdo: 20% das actividades quantificadas no estudo, outro tanto para a fraude fiscal e mais uns 10% para a economia ilegal.
2. A estes factos há que acrescentar a ambiguidade terminológica em torno destas questões. Umas vezes fala-se em “economia não registada” (ou não observada), seguindo a terminologia da OCDE, outras de “economia paralela”, outras ainda de “economia sombra”, como é designada no citado estudo. As designações podem ser indiferentes, mas temos que ter presente que as metodologias de cálculo que estão por trás são diversas e conduzem a resultados também distintos. É fundamental ter sempre presente que ao falamos na parte da actividade económica que não é registada na contabilidade nacional, que não entra nas estatísticas da produção do país, há a economia subterrânea, isto é, as actividades que são mantidas encobertas por razões de fuga aos compromissos fiscais e parafiscais; a economia ilegal, que corresponde à produção e trocas que, como o seu nome indica, são proibidas; a economia informal, pequenas actividades que estão associadas a estratégias de sobrevivência; e ainda o autoconsumo. Quatro parcelas com importâncias relativas diferentes, com causas e impactos sociais muito radicalmente distintos. Do ponto de vista social são a economia subterrânea e a economia ilegal as mais importantes quantitativamente, as mais gravosas em termos económicos, políticos e éticos.
3. Não acreditamos na “independência” de quem elabora os estudos. Acreditamos na “honestidade”. Mas se todos somos dependentes, vale mais ser-se dependente da verdade que dos negócios que se pretende promover.
Em todos os casos estes estudos têm de ser lidos e interpretados com conhecimento e sentido crítico. Quando isso não acontece existem deturpações e divulgações de ideias que podem ser perniciosas.
Foi o que aconteceu com grande parte das notícias que foram divulgadas partindo deste estudo da Visa Europa: os feirantes, os senhorios, os taxistas e os mecânicos surgem como os “maus da fita” (paga de terem feito alguma fuga ao fisco, como provavelmente o leitor ou eu, mesmo sem exercermos aquelas profissões) e todos os que praticam fraude fiscal (com exemplos tão ilustres na banca portuguesa, a começar no BPN e a acabar em muitíssimos outros) nem sequer aparecem no filme.
4. O estudo manhosamente erra, engana e atinge resultados previamente desejados. Os jornalistas reproduzem e dão vida a esses disparates. Todos nós somos enganados e desinstruídos.