António João Maia, Visão on line,

Em 1981 os TAXI, uma das primeiras bandas rock portuguesas, editavam o seu primeiro disco de originais (TAXI, polygram discos), do qual veio a ficar particularmente conhecido o “Chiclete”. Do alinhamento desse disco faz também parte o tema “Vida de Cão”, cuja letra se inicia com a seguinte passagem:
“Neste monte de ferro e aço
Onde tudo me parece igual
Ninguém liga para o que eu faço
Mesmo que tudo seja intencional”
Para lá de um certo e natural espírito de rebeldia próprio da idade dos músicos e sobretudo dos destinatários das músicas, parece óbvio (sobretudo visto daqui, trinta anos depois) que o tema procurava explorar uma certa monotonia nos estilos e nas opções de vida que os anos oitenta começavam a evidenciar, de forma muito particular nas grandes cidades.
De então para cá e muito por força do efeito de contágio caracterizador do processo de globalização, temos vivido num mundo que tem vindo a acentuar essa monotonia padronizada dos estilos de vida, sobretudo no modelo cultural ocidental. Neste sentido, a globalização pode ser também perspetivada como um processo de normalização dos estilos de vida das sociedades e das pessoas. Por isso não há já grandes dúvidas relativamente ao facto de estarmos a viver num contexto da sociedade de plástico, no sentido em que tudo (tudo o que possamos imaginar) se encontra normalizado, estandardizado, pronto a consumir, com uma capacidade de gerar quadros de vivência individual e colectiva de elevada previsibilidade e segurança, quer nas opções, quer nas expectativas, no sentido referido por Giddens em “As Consequências da Modernidade” (2000; editora Celta).
A sociedade de ferro e aço, onde tudo parecia igual, dos anos 80, evoluiu e deu lugar à sociedade de plástico. Vivemos agora como seres encerrados em “bolhas”, em ambientes assépticos, com elevados índices de conforto e de conformidade, que podem ler-se por exemplo nos nossos próprios comportamentos e nas expectativas que temos relativamente aos comportamentos dos outros. Cada vez mais assimilamos (ou vamos sendo assimilados), sem nos darmos conta, da enorme ritualidade cíclica (grande parte dela oca em si mesma) que tem vindo a tomar conta da nossa existência. A hora de levantar, a hora de comer, a hora de trabalhar, a hora de descansar, a hora de ir ao cinema, a hora de ir ao ginásio, a hora de estar com a namorada, a hora de estar com os amigos, a hora de ir ao café, a hora de estar com a família, enfim tudo muito bem arrumadinho e compactado nas nossas agendas diárias, tornando a vida de cada um de nós numa espécie de correria, sem que saibamos exactamente para onde corremos, ou muito simplesmente porque corremos. Hoje é, por exemplo, possível comer pizzas, cachorros, massas, hambúrgueres exactamente com o mesmo sabor, os mesmos ingredientes, o mesmo processo de confecção e os mesmos acompanhamentos em qualquer cidade do mundo. As principais marcas de vestuário, calçado, automóveis e tecnologia (televisores, telemóveis, computadores, etc.), os filmes, as músicas e os livros são os mesmos um pouco por todo o lado, como refere Naomi Klein em “No Logo” (2000; editora Relógio d´Água). Tudo se tem padronizado. Ritos, estilos de vida, formas de ser e de estar, locais a frequentar e sobretudo sinais e exibir (roupas, sapatos, perfumes, automóveis, locais de férias, etc.). Até as formas de pensar, nos casos em que ainda sobre tempo para tal, parecem evidenciar alguma padronização, sinal que não deixa de ser inquietante. É precisamente a este enquadramento de um certo contexto de formatação e homogeneização de todos os aspectos das nossas vidas que apelido de “bolha” de plástico, que nos rodeia e que nos vai mantendo como que plastificados, sem que grande parte de nós tenha sequer consciência deste efeito.
Por outro lado, acresce também que o mundo que criamos e que sustentamos é também ele cada vez mais virtual, no sentido em que temos deixado de contatar directamente com a natureza nas suas formas puras, naturais ou brutas. Os poucos contactos que ainda vamos tendo nas cidades (não esqueçamos que a maioria das populações vive nas cidades) são os jardins, ainda assim espaços também arranjados e produzidos à nossa medida. O dedo do homem está cada vez mais um pouco por todo o lado.
Tudo isto é naturalmente reflexo da nossa capacidade para ajustarmos o mundo e tudo o que nele se encontra em função das nossas necessidades. Se olharmos para o processo evolutivo da humanidade, desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, verificaremos que ele se tem desenvolvido sobretudo em torno da busca de soluções de adaptação do mundo à melhoria do conforto e da qualidade de vida do homem, quer em termos individuais, quer em termos coletivos (do cultural e do social).
Em “A divisão do trabalho social” (1984; editorial Presença – original de 1893), Émile Durkheim verifica que tem sido a capacidade do homem em segmentar o trabalho nas inúmeras actividades especializadas que conhecemos que tem permitido e suportado toda a evolução deste modelo de desenvolvimento tecnológico, social, económico e cultural, de elevação dos índices de conforto e do desenvolvimento dos padrões de vida das populações.
Não se defende que, em si mesmo, este processo seja mau. Bem pelo contrário. Ele tem-se revelado óptimo! Apesar das incongruências e dos desníveis que ainda se verificam, e que vamos conhecendo por exemplo através da comunicação social, nunca como no presente o homem teve padrões de vida com índices de qualidade tão elevados. Porém, e é neste ponto que verdadeiramente importa deter a reflexão, todo este contexto em que nos encontramos mergulhados aparenta ter um efeito anestesiante sobre a capacidade natural para a resolução de novos problemas, designadamente quando estes se tornam verdadeiros desafios, como aparentam ser muitos dos efeitos derivados do contexto de mudança profunda que o mundo atravessa.
Esta ilusão de controlo da realidade, alicerçada na vivência dentro de “bolhas” de plástico, como se referiu, em que todas as nossas necessidades são facilmente supridas por um mercado que as produz (vale a pena referir, a propósito das nossas necessidades e da forma como elas são criadas e mercadejadas, José Saramago em “A Caverna” (2000; editorial Caminho: pág. 282), quando escreve que “na fachada do Centro, por cima das suas cabeças, um novo e gigantesco cartaz proclamava, VENDER-LHE-ÍAMOS TUDO QUANTO VOCÊ NECESSITASSE SE NÃO PREFERÍSSEMOS QUE VOCÊ PRECISASSE DO QUE TEMOS PARA VENDER-LHE”, numa referência crítica muito clara à existência de uma lógica de mercado associada ao processo de integração social, ou, de edificação da “bolha”, no sentido que temos vindo a descrever) tende a criar uma espécie de armadilha da nossa existência individual, social e cultural, que nos tolda, conferindo a tal noção ilusória de controlo absoluto sobre tudo o que nos rodeia e que nos deixa mergulhados numa espécie de cegueira, autênticos “ilusionados”, incapazes de olhar para fora ou para lá das paredes da “bolha”, nomeadamente para questionar a própria realidade, para equacionar hipóteses de resposta, para imaginar soluções alternativas, para debater ideias fora deste contexto. A “bolha” tende a limitar a nossa capacidade de pensar fora da caixa - “thinking outside the box”.
Temos de fazer um esforço. As dificuldades resultantes da mudança precipitada do paradigma em que tem assentado o modelo social, económico e cultural e os problemas que se têm suscitado carecem que esta “bolha” se quebre, para que voltemos a ter a capacidade de ver mais além e sobretudo de ver com olhos de ver, de questionar, de reequacionar, de debater os novos desafios e as hipóteses de resposta fora da caixa.
Curiosamente, ou talvez não, toda esta crescente padronização de ritos, ritmos, imagens, expectativas, formas de estar, de pensar e de agir, ocorre num contexto em que cada vez mais se acredita viver em liberdade. Parece de facto verificar-se uma tendência para a libertação do determinismo biológico na medida em que o controlo e o domínio do mundo que nos rodeia, através de uma capacidade tecnológica para moldarmos e construirmos os nossos próprios contextos de vivência, índices ou espaços de conforto, confere-nos esta noção de domínio sobre a natureza, o mundo e os diversos riscos que se lhe associam e cria-nos esta perspectiva de liberdade.
Porém é precisamente esta noção de liberdade, em si mesma ilusória (por ser muito mais um espaço de escolha de entre diversas soluções que nos são propostas prontas a consumir, do que um espaço de inovação, de busca de novas soluções), e este “nosso” mundo (o mundo artificial que produzimos e no qual vivemos) que nos vão reduzindo as faculdades naturais para pensarmos vias alternativas para os nossos problemas e para as nossas vidas.
Temos de voltar a ser capazes de escapar a gaiolas como esta, como dizem os Táxi no último verso do mesmo tema que mencionámos no início do texto:
“Cão
Tenho uma vida de
Cão
Todos me dizem que
Não
Ninguém me vai por a ladrar”

P.S. – Em “Canibais e Reis”, Marvin Haris (1990; Edições 70) faz uma análise descritiva do processo evolutivo das grandes culturas da humanidade e dos desafios com que se cruzaram, para verificar que o homem tem sido sempre capaz de encontrar alternativas para os seus problemas. Porém, verifica o mesmo autor, o desenho e a adopção de tais alternativas tende a ocorrer apenas e só quando o modelo em crise já não permite sustentar qualquer aproveitamento.
Se considerarmos esta perspectiva, então teremos de acreditar que muito provavelmente e apesar de evidenciar fortes sinais de estar em crise e em fim de ciclo, o modelo social, económico, político e cultural em que temos vivido ainda não se esgotou. Por outro lado, temos de acreditar também que, quando o modelo efectivamente se esgotar, o homem acabará inevitavelmente por encontrar as soluções alternativas ao próprio modelo.