Pedro Santos Moura, Visão on line,

"When the game is over, it all goes back in the box", John Ortberg
Ultimamente tenho sabido de estórias no mínimo curiosas relacionadas com questões de dinheiro entre pais e filhos. Se até há pouco tempo o caso mais comum seria o do filho que se quedava tardiamente em casa dos pais, com grande parte da sua subsistência assegurada por estes, as tais estórias que me têm chegado dizem respeito ao inverso: pais, que devido a um acumular de bens (e correspondentes dívidas) ao longo dos anos, suportados até agora pelos mecanismos dos créditos fáceis (crédito para pagar crédito para pagar crédito para pagar…) e chegados ao actual instante de crise económica, se vêm envolvidos num novelo de dívidas com o qual já não podem pagar ou lidar, sendo em muitos casos os filhos que lhes vêm dar a mão. Saber deste fenómeno deu-me que pensar.
Quando falamos de fraude, pensa-se em algo como “apropriação indevida de bens ou vantagens para benefício próprio”. Mas subentende-se sempre uma certa noção temporal de Presente, de actualidade. Ora o que agora se começa a ver (por vezes não se vê o que está diante do nariz) é um processo que decorreu ao longo de muito tempo, que sumariamente consistiu na apropriação generalizada de bens ou vantagens com impacto negativo sobretudo no Futuro. O que dizer de dívidas que se contraem sem uma real perspectiva de serem saldadas? O que dizer de fundos e bens desbaratados ao longo de décadas, originalmente destinados à melhoria estrutural do tecido social e económico de todo um país, para benefício indevido de uns poucos? O que dizer de dinheiro que se empresta sem um valor real associado, dinheiro virtual que passa a ser real quando alguém assume uma dívida relativa ao mesmo?
O caso dos pais suportados pelos filhos não é por si um choque. O dever de solidariedade intra-geracional assenta em princípios éticos básicos de qualquer sociedade. O caso das dívidas dos pais suportadas pelos filhos é, esse sim, chocante. No final quem paga não é quem usou ou ganhou posse. A Motivação é aquela que até agora parece ter sido inquestionável por estes lados: ter mais; não necessariamente melhor, mas mais. A Oportunidade, óbvia: facilidade de acesso a crédito para tudo e mais alguma coisa. A Racionalização do acto, vem do simples facto de ‘toda a gente fazer o mesmo’. Parece fraude? Cheira a fraude? Sabe a fraude? Mas não é bem fraude, mesmo que encaixe que nem luva na definição. Isto porque um comportamento social e culturalmente generalizado e vindicado não é considerado um acto ilícito ou marginal. Talvez se devesse abrir um novo campo de estudo: a Auto-fraude, a fraude sobre nós mesmos, individual e socialmente, que estudasse estas tipologias algo ‘masoquistas’ de utilização dos recursos disponíveis. Fica a sugestão.
Sinto-me defraudado, enquanto pessoa e cidadão. Daí uma certa perspectiva biliar no que escrevo acima. Custa-me perceber que as minhas filhas vão provavelmente viver numa sociedade mais desigual que eu. Custa-me sentir que há uma certa ilusão colectiva sobre a realidade, em que todos tentam achar ‘os culpados’ mas ninguém olha realmente para si, para o que se passou e passa a partir de uma perspectiva crítica, objectiva, e que pudesse ajudar a refundar alguns tiques culturais que melhorassem a perspectiva colectiva e individual do futuro.
A causa da crise actual é, em meu entender, sobretudo uma grande Auto-fraude colectiva, assente na desresponsabilização e corrupção generalizadas. Quisemos simplesmente ter mais (não ser mais ou ter melhor), não interessando os meios ou as consequências que daí poderiam advir. Acreditou-se piamente no wishful thinking de que ‘isto é sempre a crescer’. E não é. Estoirámos recursos económicos, pessoais, espirituais, culturais e naturais em busca de algo que não se sabe sequer bem o que é, sem peso, conta ou medida. Acreditámos que os recursos são infinitos, assentámos a nossa vida numa cultura de desperdício, esquecemo-nos das pessoas, de nós próprios. Defraudamos as possibilidades de uma vida sustentada e sustentável.
Urge aprender com os erros. E ter consciência. A culpa de tudo isto não é do ‘sistema’, ou de uma ‘conspiração’, ou do ‘mercado’, ou do ‘governo’. É de todos. Andámos durante anos e anos a cometer ‘Auto-fraude’. A grande mudança não vem de fora ou de cima: vem da mudança de cada um, na sua vida, no seu trabalho, em si próprio.
Costumo dizer quando se fala de combate a fraude (e outros temas): podemos ter o melhor dos sistemas, o mais perfeito, o mais refinado; caso a cultura seja medíocre, o sistema vai falhar. Já um sistema com imperfeições, conjugado com uma boa cultura generalizada é garantia quase certa de sucesso.
Porque a questão fulcral de tudo isto não é só ‘pagar a dívida’, como alguém que foi julgado e condenado a pagar uma multa. As multas pagam-se e muitas vezes o que daí resulta é somente um inimigo, alguém mais que culpar. O essencial é reperspectivar os nossos valores, a nossa cultura pessoal e colectiva, os nossos objectivos e, sobretudo, os nossos actos. Sobretudo, pararmos com a ‘Auto-fraude’.