Carlos Pimenta, Visão on line,
1. Tenho que começar por informá-lo que a instituição que representa não me é cara. Em primeiro lugar porque a sua organização, com forte influência na política mundial, foge às mais elementares regras de funcionamento democrático e controlo por parte dos países. Em segundo lugar porque tem espalhado a miséria em muitos territórios, aparecendo em alguns casos associado à instalação de ditaduras. Em terceiro lugar porque é impositivo em relação aos países da periferia e semiperiferia e de uma grande condescendência, mesmo abstenção, em relações aos senhores do mundo contemporâneo. Em quarto lugar porque a sua visão estreita de financiadores, mais precisamente de intermediários de financiadores, têm levado a uma subvalorização das vertentes financeiras, esquecendo que a resolução efectiva e estrutural dos problemas passa pela actividade produtiva, pelas relações entre os homens, pela economia. Em quinto lugar porque é um dos pilares de difusão da ideologia neoliberal que tem levado a uma beatificação dos mercados, a um agravamento das desigualdades económicas nos países e entre países, a uma subordinação dos Estados aos interesses das empresas internacionais e dos rendeiros decisores dos mercados financeiros, a uma subestimação do homem enquanto destinatário e interveniente fundamental do funcionamento da sociedade. Em sexto lugar porque contribuiu para o desgoverno e a desregulação que conduziram à crise que temos vivido à escala mundial. Em sétimo lugar porque substituem-se ao funcionamento democrático dos países, ao imporem as regras dos financiadores, que não são decididos pelos cidadãos ou seus representantes legítimos. Enfim porque têm contribuído fortemente – embora estejam longe de serem os únicos responsáveis – para o Estado abdicar dum projecto próprio de construção colectiva do futuro e passe a ser um facilitador das propostas e imposições do capital-dinheiro.
Como financiadores têm a preocupação principal de reaverem o empréstimo, de serem pagos no futuro, mas mais uma vez reafirmo o anteriormente dito recordando as palavras avisadas de Stiglitz:
"De todos os erros cometidos pelo FMI, os mais flagrantes foram talvez os de calendário e de ritmo, e a insensibilidade ao contexto social mais amplo – forçar a liberalização antes de accionar os mecanismos de segurança, antes de instaurar um quadro regulamentar adequado, antes de os países estarem preparados para fazer face aos efeitos adversos das mudanças bruscas de humor do mercado que são apanágio do capitalismo moderno; impor medidas que levaram à destruição de postos de trabalho antes de lançar as bases para a sua criação; forçar a privatização antes de fomentar a concorrência e de criar uma regulamentação adequada. Muitos dos erros de etapas reflectiram incompreensões cruciais tanto do processo político como do económico, as quais estavam associadas àqueles que perfilhavam o fundamentalismo de mercado. Estes defendiam, por exemplo, que, logo que fossem definidos os direitos de propriedade, tudo o resto surgiria naturalmente, incluindo as instituições e as estruturas legais que fazem funcionar as economias de mercado." (117)
"Se o FMI subestimou os riscos para os pobres das suas estratégias de desenvolvimento, também subestimou os custos políticos e sociais a longo prazo das políticas que destruíram a classe média, enriquecendo uma elite, e sobrestimou os benefícios das suas políticas assentes no fundamentalismo do mercado. Ao longo da História, a classe média tem sido o estrato social que tem pugnado pelo cumprimento da lei, pelo ensino público para todos, pela criação de um sistema de segurança social. Estes elementos são essenciais para uma economia saudável, e a erosão da classe média traduziu-se no enfraquecimento do apoio a estas importantes reformas." (129)
"A mudança de mandato e de objectivos pode ter sido discreta, mas não tem sido subtil — o FMI deixou de servir os interesses económicos mundiais para servir os interesses financeiros mundiais” (263) (Globalização, A Grande Desilusão. Lisboa, Terramar.)
Mas tenho que reconhecer que na presente situação o FMI tem sido utilizado pelo Governo e pela União Europeia como espantalhos para espalharem o pânico. Enquanto se diaboliza o FMI esquece-se a incompetência do governo, ignora-se que hoje a Europa é um centro nevrálgico à escala mundial das políticas económicas mais graves contra as populações, complacente com o capital especulativo, assumindo o Banco Central Europeu um lugar de destaque nessa política.
O principal responsável da actual situação não é o FMI. A responsabilidade é inteiramente dos sucessivos governos portugueses cujos membros estiveram mais preocupados com o proveito próprio do que com o bem público, que revelaram grande incompetência na gestão dos recursos nacionais, públicos e privados, que foram subservientes em relação às imposições externas e dos mercados financeiros. A responsabilidade é dos governos (e da CEE/EU) que acreditaram que destruir o tecido produtivo português garantia o futuro do país, que aceitaram exclusivamente a “convergência nominal” para suporte da moeda única europeia e que pretenderam estar no “pelotão da frente” na criação da nova moeda, que aprovaram o Tratado de Maastricht e outros documentos posteriores limitando a possibilidade de se contemplar a diversidade dos países europeus. A responsabilidade é dos dois últimos governos que foram incapazes de conhecer o Estado que administravam, que desprezaram integralmente as suas funções de reguladores, nomeadamente do sector financeiro, que mentiram descaradamente sobre a situação efectiva do país, que construíram “teorias sistémicas” para utilizar os dinheiros dos contribuintes e dos utilizadores de serviços públicos para salvar defraudadores, que jogaram com as palavras para “lançar poeira para os olhos” dos portugueses, que ampliaram muito o compadrio, a corrupção e a fraude em Portugal.
E é exactamente sobre estas questões que queremos colocar-lhe algumas questões, certos que a redução drástica da corrupção, a imposição de uma política antifraude em diversos estratos e sectores nacionais, a redução da economia não registada, sobretudo a “subterrânea” e a “ilegal”, são pedras fundamentais para mudanças estruturais da nossa economia e do saneamento financeiro. São meras perguntas assentes em algumas constatações de facto.
2. A economia subterrânea, o conjunto das actividades económicas que se estruturam de uma determinada forma com o fim prioritário de não pagar ao Estado (impostos, compromissos com a Segurança Social, taxas alfandegárias, etc.) tem vindo a aumentar sistematicamente, tendo atingido em 24,2% do Produto Interno Bruto. Há em Portugal 39.661 milhões de euros de criação de rendimento que fogem deliberadamente às responsabilidades fiscais. O montante de fuga é de 14.595 milhões de euros. O que tenciona fazer para combater esta situação que resolveria uma parte dos problemas financeiros do Estados? Tomar medidas estruturais como restringir a liberdade de circulação de bens e capitais? Pôr em causa os offshores ou as relações com eles? Melhorar os serviços públicos e tomar outras medidas que aumentem a confiança entre os cidadãos e o Estado? Reduzir alguns impostos, ou pelo menos, ser-se selectivo e cuidadoso com os aumentos da carga fiscal? Considerar crime a fraude fiscal qualificada e criar condições para que as penalizações sejam aplicadas? Passar a haver uma efectiva regulação, não burocrática e operacional, do sector financeiro e uma vigilância mais apertada ao branqueamento de capitais? Deixar de haver portugueses de primeira e de segunda no acesso à justiça e nas decisões judiciais? Terminar os perdões fiscais e a negociação das dívidas, mesmo de quem pode pagar?
A corrupção é um pilar deste processo de fuga às responsabilidades, de negócios ilícitos, de arquivamento de processos, de subordinação do Estado aos interesses das máfias. Ninguém terá dúvidas sobre a estreita relação, embora dependa também de muitos outros factores, entre a corrupção e a economia paralela. Não é por caso que em Portugal tem havido um aumento simultâneo da corrupção percepcionada e da economia subterrânea. Exige a mudança das leis de combate à corrupção, uma simplificação dos processos de prova forense, a condenação do enriquecimento ilícito – só do ilícito e com respeito pelas liberdades individuais –, a revogação imediata da legislação de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, um mais eficaz processo de denúncia e de protecção das testemunhas? Propõe mais recursos para a investigação da criminalidade económica complexa e da corrupção? Exige que a Assembleia da República e outras instituições políticas não sejam um enxame de representantes das empresas, incluindo das que negoceiam directamente com o Estado? Exige que os conflitos de interesse entre o público e o privado tenham mesmo que ser tomados a sério e impeditivos do exercício de cargos públicos? Como impedir a impunidade das figuras políticas em quase todos os processos em que estão envolvidos?
Também a fraude das empresas – algumas já englobadas na quantificação da economia paralela – e contra as empresas assume elevados montantes em Portugal e delapida valor criado. Outras empresas são fantasmas servindo apenas para manipulações contabilísticas. Será exigido que as empresas façam análise de risco de fraude e assumam as medidas preventivas, que haja para os sectores nevrálgicos da economia políticas antifraude assumidas pelo sector e por cada uma das empresas, que haja formação de especialistas em detecção e combate de fraude? Há limites aos prémios dos gestores, sobretudo quando alicerçados em resultados de curto prazo? Criam estímulos à empresas que tenham uma política de formação ética?
3. Muitas outras questões poderiam ser colocadas.
Provavelmente a algumas perguntas responderá que a sua resolução passa por decisões das instituições portuguesas. Tem razão, mas não aconteceria o mesmo com a legislação laboral e outras matérias que tem abordado?
Provavelmente dirá que algumas destas questões ultrapassam o âmbito nacional, como as relacionadas com os paraísos fiscais e a concorrência fiscal entre países, mesmo entre os que pertencem à “colaborativa” e “fraterna” UE. Tem razão, mas não é altura de inverterem a vossa política institucional que tem fortalecido essas graves “desregulações” da economia mundial?
Provavelmente argumentará que a vossa finalidade é garantir liquidez ao Estado e ao sector financeiro, e só a esses, e garantir que os credores internacionais sejam pagos. Sem dúvida, mas não acarretarão as medidas que propõe um agravamento da degradação das relações éticas e sociais numa sociedade crescentemente desestruturada?
4. Provavelmente enganei-me no destinatário da carta, pois apenas pretendia influenciar o futuro do nosso país, com mais justiça, com mais democracia, logo com maior coesão social e mais ética.
Deveria ter escrito aos portugueses que com o seu voto, ou sua abstenção, podem influenciar o futuro do país.
Poderão mesmo, com este Estado?
5. Se no momento de publicação desta carta a “troika” já tiver “feito das suas”, o leitor que me desculpe.