Mariana Costa, Visão on line,

Durante o meu estágio de advocacia e no início da minha actividade profissional como advogada trabalhei sobretudo em contencioso ligado ao crédito ao consumo, representando a entidade bancária.
Se a experiência nem sempre foi particularmente estimulante do ponto de vista jurídico (com algumas honrosas excepções), o mesmo não posso dizer do ponto de vista das relações humanas. Lidar com débitos associados a contratos de crédito ao consumo é como fazer parte de um novo Auto da Barca do Inferno, no qual também eu desempenhava o meu papel.
De todos os mal-entendidos que o primeiro contacto telefónico com o devedor proporcionava, o mais comum era a crença de não ter celebrado qualquer contrato de crédito bancário. Passo a explicar: os contratos em causa eram celebrados na loja onde o devedor comprava o bem cuja aquisição era financiada pelo banco (e alguns – caso típico da aquisição de colchões e desumidificadores – eram mesmo celebrados na casa do devedor). Ora, muitas das pessoas com quem contactei estavam convictas de terem feito uma compra a prestações, desconhecendo por completo que é possível celebrar contratos de crédito fora das instalações de um banco. E essa era frequentemente a primeira dificuldade: explicar a diferença entre o contrato de compra e venda do bem e o contrato de crédito ao consumo.
A este propósito recordo uma situação caricata. Depois de cerca de uma dezena de contactos telefónicos que já havia feito nesse dia, peguei num processo que envolvia uma compra de móveis para a casa. Procurei o contacto telefónico do devedor (neste caso uma devedora) e marquei o número. Quando a senhora atendeu, identifiquei-me e expliquei que estava a telefonar por causa das prestações em falta relativas ao financiamento da compra dos móveis. Nessa altura, a devedora suspirou de alívio e disse-me: “É os móveis que quer? Então venha, por favor. O móvel da sala partiu e a televisão ficou em pedaços e a cama do meu filho está quase a partir e tenho medo que o miúdo se magoe, por isso agradeço-lhe que os venha buscar. Olhe, eu moro no segundo andar e ainda não deitei os móveis ao lixo, porque não sei como os levar para baixo, mas se o tribunal os vier buscar, é mais fácil esperarem do lado de fora do prédio e eu atiro-os pela janela”.
Situação menos comum prendia-se com a penhora do vencimento. Diga-se que raras eram as vezes em que constava do processo a identificação de uma entidade patronal, mas quando assim era havia motivos para acreditar que o ressarcimento do valor em dívida iria ser bem sucedido. Recordo-me de contactar devedores que, confrontados com a alternativa de novo acordo de pagamento em prestações ou a interposição de uma acção executiva em tribunal e subsequente penhora, me informaram muito simplesmente não terem contas bancárias, nem bens imóveis ou móveis de valor e, no caso de ser intentada acção judicial, pretenderem cessar o seu contrato de trabalho, por mútuo acordo com o empregador, continuando a trabalhar e a receber o valor do vencimento, agora de forma oculta. São o que se pode chamar “devedores de primeira liga”.
Mas há dois casos que destaco, pela imaginação e ironia.
Num primeiro, recebi no escritório um relatório de penhora do recheio da casa não realizada, sendo o fundamento do cancelamento do acto um guardanapo de papel assinado pelo devedor, onde estava escrito: “Declaro que ofereço todo o recheio da minha casa ao meu filho Paulo”.
O segundo, a que já tive oportunidade de fazer breve referência aqui, permite-me até hoje anunciar que fui uma das primeiras pessoas a prever a actual crise. Tratava-se de um crédito ao consumo concedido para a aquisição de uma cadeira de massagens, com um débito de cerca de €5.000,00 (não me recordo com precisão). Ao ler o processo, constatei que quando foi pedido ao devedor um comprovativo de residência, para instruir o processo de pedido de crédito bancário, este juntou uma carta da EDP a informar que iria cortar a luz por atrasos no pagamento. E o crédito foi concedido. Depois de ter lido a carta da EDP e passado os olhos pelo processo, anunciei na sala onde estava a trabalhar, perante uma assistência absolutamente desinteressada: “Isto vai ter de rebentar.”