José António Moreira, Visão on line,

Via-se sentado à secretária no início de mais um dia de trabalho, executando as rotinas habituais: ligar o computador e esperar pacientemente que, no seu funcionar ronceiro, ele abrisse as aplicações principais; passar os olhos pelas páginas online dos jornais diários de referência, naqueles cinco a dez minutos de tempo que dedicava à tarefa em cada dia …
Parou subitamente. Voltou atrás. Confirmou que era o que parecia. Leu.
“iPad 2 não chegam para as encomendas”
Clicou no link associado. As duas primeiras linhas de texto explicavam o título.
“A Apple está em dificuldades para responder à procura do novo modelo do iPad. Em Portugal, muitas lojas viram esgotar o iPad 2 logo no primeiro dia.”
Tirou os óculos e passou a mão pela testa, num gesto mecânico. Voltou a colocar os óculos e leu novamente, agora o texto todo. Não acrescentava muito mais ao conteúdo das duas primeiras linhas.
Ficou estático, pensativo, rugas a sulcarem-lhe a testa. O dedo carregou no rato e o apontador abriu a secção dos comentários dos leitores. Leu um dos primeiros, à sorte.
“Quanta inveja...
Antes de mais: sim, comprei um iPad2! E adoro-o! Fico pasmado com comentários de "tuga" que só tem "dor de cotovelo". Felizmente, trabalho, pago todos os meus impostos, não tenho dívidas, e sim, tive como prioridade comprar um iPad2. Aliás, esperei até uma tarde na fila para o ter no dia de lançamento. Expliquem-me, por favor, em como é que isso contribuíu para a crise? Ou porque motivo tenho de justificar perante o "povo" que gosto do meu gadget? Se o posso comprar, e gosto dele, vou deixar de fazê-lo porquê? Sim, enche-me o ego ….“
Parou de ler. Pousou os cotovelos na secretária, ergueu as mãos e enfiou a cabeça entre elas. O olhar perdeu-se no horizonte que a janela permitia captar. Sentia-se defraudado.
Pela actuação do Governo. E pensava no ano e meio de mentiras, de negação de uma crise financeira que se sentia no ar, que invadia o país como um tsunami, entremeada por sucessivos “pacotes de austeridade”, cada um deles o último, até dar lugar ao próximo. Sem uma palavra da parte dos dirigentes políticos aos cidadãos, para os colocar ao corrente do que se passava, para lhes pedir uma actuação pessoal consentânea com a necessidade de evitar o “pântano” em que o país se afundava.
Mas defraudado também pelo comportamento dos seus concidadãos perante a crise. Que continuavam a fazer as suas vidinhas de novos-ricos, inconscientes do que isso significava para a evolução da situação do país como um todo. Inconscientes de que um dos problemas principais para a situação financeira que o país atravessava era a insuficiência de poupança interna.
Apeteceu-lhe praguejar …
[Um despertador toca]
Acordou repentinamente, alagado em suor. Respirou fundo. Voltou a inspirar profundamente. Pensou que afinal tudo não passara de um pesadelo ... Sentiu alívio.
O chuveiro que tomou relaxou-o. Sentia-se um pouco cansado, mas pronto para mais um dia de trabalho.
Sentou-se à mesa do pequeno-almoço, cheio de apetite. Desdobrou o jornal diário que acabara de chegar. Uma das notícias do dia, estampada em grandes caracteres, ocupava toda a largura da primeira página.
“Destinos de férias esgotados na Páscoa”
Sentiu um nó no estômago. Queria vomitar.
Nota: este texto ficcionado é baseado em informação real, recolhida, respectivamente do Público Online, 28.3.11, e do JN, 6.4.2006.