O Caso furacão chegou ao fim 14 anos depois |
O acordo principal começou a ser discretamente delineado na manhã de 14 de [unho de 2017, o dia do interrogatório de António Amaral Medeiros, administrador desde ,1998 da Servitrust, Trust and Management Services, uma sociedade anónima com um capital social de cerca de 100 mil euros, fundada em 1996 e detida a 100% pelo Millennium bcp. Com que objectivo?
Cativar clientes endinheirados para o private banking e também vender offshores e esquemas de fuga ao fisco a pelo menos 30 empresas clientes do banco. Naquele dia do ano passado, as duas procuradoras do Ministério Público (MP), Ana Catalão e Rita Simões, já sabiam ao que iam e quiseram perceber logo se o arguido e o banco (depois de encerrada em 2008, a consultora voltou a abrir, mas manteve-se sem actividade ou funcionários) estavam disponíveis para acertarem o pagamento de um montante que encerrasse o processo e os livrasse de responderem em tribunal pelo crime de fraude fiscal qualificada. "A ideia é fazermos isto antes de se chegar à acusação?", questionou António Medeiros durante o interrogatório de 40 minutos gravado em vídeo na sala 2 do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), em Lisboa. Acompanhado pelo advogado Germano Marques da Silva, o administrador da Servitrust obteve de imediato a concordância das magistradas, que ainda assim insistiram na questão: "O sr. estaria aberto a essa ideia?" Percebeu-se que estava, mas o advogado interrompeu-o dizendo que era necessário que o MP apresentasse "números palpáveis", porque tinham de "convencer as pessoas" a aceitarem o acordo. Segundo especificou Germano Marques da Silva, o que estava em causa era a administração do BCP, que não era a mesma da altura em que os crimes tinham sido cometidos no início da década de 2000. O administrador da Servitrust aproveitou a deixa e referiu que não era ele que "passava os cheques", mas o acerto de vontades com o MP pareceu logo ali ser muito fácil de concretizar. Até porque as procuradoras esclareceram que não iriam regatear: nenhum outro arguido iria ser constituído no grupo BCP (dois dos administradores da Servitrust já tinham entretanto morrido) e o objectivo principal era apenas cobrar "uma injunção adequada" que não incluiria sequer, como tinham pensado inicialmente, os juros sobre casos de fuga ao fisco detectados em 2006/7. De seguida, o MP anunciou que a "nota de valores" iria ser formalizada por escrito nas semanas seguintes e António Medeiros pareceu respirar de alívio. Depois de reconhecer que na administração do banco "as pessoas estavam muito expectantes", o responsável ainda desabafou: "Esta é uma história infeliz porque não se fez atempadamente o que se devia fazer para acabar com isto." O administrador referia-se às cartas que remeteu em 2003/4 à administração do banco para que fosse "descontinuado" o esquema que vendia aos clientes um circuito internacional de offshores- fantasma para, por exemplo, sobrefacturarem vendas fictícias e assim aumentarem os custos das empresas portuguesas e diminuírem os pagamentos de impostos em território nacional. No total, segundo as contas do MP e só nos casos contabilizados pelos investigadores entre 2001-05, o esquema da Servitrust/BCP provocou um prejuízo ao Estado avaliado em cerca de 45 milhões de euros. Tudo acertado perante o juiz Poucas semanas depois do interrogatório do administrador, a 7 de Julho do ano passado, o MP cumpriu o prometido e mandou a conta ao advogado da Servitrust/BCP: 1.192.479,23. Os cálculos foram feitos assim: como no processo (individualizado do caso Furacão em 2007) ainda havia sete empresas arguidas que recusavam pagar um total de cerca de 11,9 milhões de euros de impostos e juros em atraso (os outros arguidos já tinham chegado a acordo ao longo dos anos), o MP decidiu aplicar ao promotor da fraude uma injunção de 10% do valor em dívida. Dez dias depois, a Servitrust aceitou pagar e o caso foi encerrado ainda antes do despacho de acusação daquele que é o oitavo e último grande processo autónomo do caso Furacão. Uma megainvestigação iniciada em 2004 pelo inspector tributário Paulo Silva e o procurador Rosário Teixeira que só acabou por sentar no banco dos réus aqueles que não acordaram com o MP pagamentos mais ou menos avultados. Quer os arguidos fossem simples aderentes ou os próprios promotores dos esquemas de fraude fiscal. Neste último caso estiveram em causa várias consultoras e bancos como o BCP, o BES, o BPN e o Finibanco, constituídos arguidos e alvos de busca na primeira grande operação de 2005 do caso Furacão. Treze anos depois, é possível perceber que tal como sucedeu com a quase totalidade dos grandes processos nascidos do Furacão (só o inquérito da consultora Finatlantic chegou a julgamento), também o caso Servitrust/BCP nunca será julgado num tribunal. Segundo a consulta feita no mês passado pela SÁBADO aos 27 volumes principais do processo depositados no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), só quatro empresas (num total de 11 arguidos entre entidades colectivas e administradores) foram acusadas pelo MP, em Novembro do ano passado. O valor que restava das dívidas fiscais era de 7 milhões de euros. Assim, caso se mantivessem os termos do "negócio" feito poucos meses antes entre o MP e a Servitrust, os 10% do valor das dívidas dos aderentes ao esquema faria a conta do BCP descer de 1,2 milhões para 700 mil euros. Especulações à parte, o que fica para a história deste processo é que até as quatro últimas empresas acusadas acabaram por concordar já este ano, durante a instrução do inquérito no TCIC (a fase que decide se um processo segue ou não para julgamento), em pagar aquilo que o MP lhes exigia. Mas aqui as negociações não foram fáceis. Os avanços e os recuos arrastaram-se entre 13 de Março e 6 de Julho passados, mas o juiz de instrução Ivo Rosa acabou por ratificar o acordo (e o calendário dos pagamentos das dívidas) entre o MP e as empresas Rui Costa e Sousa & Irmão; Atena T; SAPJU, Sociedade Agro Pecuária; e Madeira & Madeira, Importação de Ferragens e Ferramentas. Curiosamente, foi tudo tratado perante o juiz que, em 2005, tinha autorizado as primeiras buscas aos bancos e às consultoras suspeitas, incluindo a Servitrust e o BCP. E que já tinha também ratificado em 2016 o acordo entre o MP e a Esger, uma consultora ligada ao BES. Uma situação idêntica a outros processos Furacão que foram tramitados pelo juiz Carlos Alexandre. Os milhões da Delta "Um colega meu ainda se lembra de uma conversa que tive com ele e em que lhe disse: qualquer dia, param um camião TIR à porta do banco e levam tudo", desabafou no interrogatório de 2017 o administrador da Servitrust, António Medeiros. Premonitório, foi isso mesmo que aconteceu no BCP a 19 de Outubro de 2005, quando o juiz Ivo Rosa apresentou nove mandados de busca e apreensão para todos os pisos do nº 108 da Av. da Liberdade, em Lisboa. Nesse dia, pelo menos outros oito mandados judiciais do mesmo juiz foram apresentados pela PJ e magistrados judiciais e do MP nas instalações do banco no Porto, em Lisboa e na Madeira - respectivamente, no Private Banking International, no BCP Cayman e na Sucursal Financeira Exterior do BCP. E também na Servitrust, que no Funchal ficava nas mesmas instalações do banco. Tal como sucedia em Lisboa. Nestas buscas iniciais, o objectivo era apanhar tudo o que estivesse relacionado com o esquema de fuga ao fisco, nomeadamente a identidade dos clientes angariados, os circuitos de offshores usados e quem eram os intermediários no estrangeiro. Um destes últimos era a sociedade Fiduciary Group, com sede em Gibraltar e escritórios no Reino Unido, precisamente a entidade responsável por criar em 1997 duas outras sociedades, a Portrade e a Intrade, que emitiam facturas de serviços às empresas portuguesas angariadas pela Servitrust dando assim credibilidade a transacções internacionais que na realidade não existiam. Conforme consta na acusação de 2017 do processo 66/07.2TELSB, o MP nunca teve dúvidas de que a "actividade comercial da Servitrust estava alicerçada na rede bancária do grupo BCP, nomeadamente nas diversas unidades que compunham o negócio do private banking, e era em estreita cooperação com estas redes do banco que a Servitrust desenvolvia a sua actividade." Os fortes indícios de que tudo se passou assim ficaram registados nas milhares de páginas do processo-crime, a começar pela inúmera documentação apreendida nas buscas de 2005. Além disso, o MP obteve ao longo dos anos um vasto número de testemunhos de administradores de empresas que aderiram ao esquema e pelo qual disseram que chegaram a pagar à Servitrust uma anuidade de cerca 15 mil euros e entre 0,25% e 0,50% sobre o total das facturas fictícias emitidas. Mas revelaram mais. Por exemplo, Eunice Carvalho, uma das donas da empresa Eureka, Comércio de Matérias Plásticas, lembrou que os primeiros contactos para contratar o esquema foram feitos sempre com funcionários do BCP e que um deles chegou a ir à sede da empresa para lhe oferecer os serviços que lhe foram apresentados como legais. Noutros casos, clientes do esquema argumentaram que tudo lhes foi oferecido no private banking do BCP e que a solução lhes foi sempre classificada como "de planeamento fiscal agressivo". As visitas a alguns dos bons clientes do BCP, como terá sucedido com a família Nabeiro e a Novadelta, foram feitas pelo próprio António Medeiros (o responsável da Servitrust disse ao MP que foi a única empresa que visitou) e pelo então administrador do banco com o pelouro da Servitrust, António Castro Henriques. Os documentos que a SÁBADO consultou no TCIC revelam que as sedes do grupo Novadelta e também a construtora Mota-Engil foram duas das grandes empresas portuguesas apanhadas no processo e alvo de buscas do MP, respectivamente, a 6 e 7 de Dezembro de 2006. A operação estendeu-se às casas de António da Mota, em Amarante, e da família Nabeiro, em Campo Maior. Em 2014, e depois de vários avanços e recuos quanto ao montante dos impostos a pagar, o procurador Rosário Teixeira comunicou à construtora que tinha de pagar 6.111.406,45 e o acordo concretizou-se entre o MP, António Mota, a irmã Maria Manuela e a própria Mota-Engil. O pagamento foi feito em duas prestações. Já a Novadelta, que usou facturas fictícias para justificar quase 57 milhões de euros, teve de pagar cerca de 6,2 milhões de euros para não ser acusada de fraude fiscal. O acordo com o MP foi aceite em Março de 2016 pelo advogado que representava a empresa, Francisco Proença de Carvalho. |