António João Maia, Visão on line,
Há dias, enquanto falava ao telefone com um amigo, acabámos invariavelmente por passar de raspão pelo estado actual do país, dos portugueses e das perspectivas que se nos colocam para os próximos tempos. Enquanto ele caracterizava a nossa realidade com a tão conhecida referência musical do Sérgio Godinho, o "cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas", eu associei-a a uma daquelas fotografias antigas a preto-e-branco, do género das que guardamos dos nossos avós, com a diferença de, nesta que imaginei, as pessoas surgirem com um sorriso forçado, envergonhado, tristonho, com a agravante de se encontrar a tal ponto desfocada que as feições das pessoas se mostravam estranhamente distorcidas, e sem permitir que se conseguisse perceber o fundo, o cenário escolhido pelo fotografo para a captar.
Concordámos depois que as duas visões eram de todo concordantes, como se fossem os dois lados da mesma moeda, porque, embora associando o nosso presente a visões distintas, não deixavam de, à sua medida, corresponder a um certo sentido de resignação, nostalgia e encolher de ombros que nós, os portugueses, possamos porventura estar a viver e a sentir no dia-a-dia das nossas existências.
Terminada a conversa, continuei a reflectir sobre as imagens que acabáramos de utilizar para caracterizar a nossa realidade de hoje, acabei mesmo por imaginar a junção de ambas. Imaginei uma foto, desfocada, destorcida, de vinte milhões de orelhas, ou melhor de dez milhões de pares de orelhas, cada um deles com uma posição predeterminada. Depois, entre cada duas orelhas constituintes de um par, surgia então, com mais ou menos esforço, a face encaixada, nalguns casos mesmo forçada, de cada um de nós, como se uma força nos compelisse para a foto e, enquanto nos empurrava, nos ia exigindo que, apesar do esforço, fossemos ainda capazes de sorrir. É evidente que acabei por me rir desta imagem assim grotescamente pincelada e, no momento seguinte, voltei à minha própria realidade.
Serve esta estranha nota de abertura para de alguma forma procurar enquadrar a questão que quero verdadeiramente abordar nesta crónica e que se prende com a mudança social.
O sociólogo francês Émile Durkheim, é considerado o primeiro autor que estudou a problemática da mudança social. Foi no final do século XIX que introduziu o conceito de Anomia, por referência a situações em que as normas sociais e morais se tornam confusas, obscuras ou muito simplesmente inexistentes. Nestas ocasiões, quando as normas existentes deixam de ser reconhecidas (e portanto respeitadas) pelos sujeitos, mas ainda não se encontram suficientemente cristalizados os procedimentos que hão-de originar os novos padrões normativos que as irão substituir, verificou aquele autor, os sujeitos tendem a sentir-se confusos, estranhos e desesperados, por perda das referências e por deixarem de ter a percepção do que é correcto e incorrecto. Ficam como umas "baratas tontas" sem saber muito bem que caminho seguir.
O termo anomia deriva do grego "anomos", que significa sem (a) lei (nomos), e o autor utilizou-o pelo primeira vez em "O Suicídio" (1897) (edição portuguesa de 1977 da Editorial Presença), ao conseguir correlacionar positivamente a ocorrência de alguns actos de suicídio com enquadramentos sociais de desespero, resultantes de uma menor consistência normativa e dos valores sociais. O autor caracterizou estas situações como actos de suicídio anómico.
De certa forma, o presente está a evidenciar sinais de necessidade de mudanças nos nossos estilos de vida. As anunciadas medidas para fazer face à crise que atravessamos vão necessariamente (já ninguém acredita no contrário) provocar alterações nos nossos padrões de vida. Naturalmente que essas alterações vão ter efeitos distintos em cada português. Mas uma coisa parece certa, vamos ter de "apertar o cinto" e, face a esta perspectiva, poucos ou nenhuns de nós sabem exactamente o que vai suceder, como vai ser possível e necessário que nos adaptemos a uma nova realidade, cujos contornos exactos ainda não conhecemos, mas que, os entendidos afirmam-no, traz consigo algumas dificuldades económicas. Acrescente-se a propósito, em concordância com todo este contexto sinteticamente descrito, que numa recente divulgação dos resultados de um inquérito realizado na Europa, os portugueses revelaram sentirem-se menos felizes do que o valor médio de felicidade assumido pelos cidadãos europeus.
É em face desta perspectiva acinzentada que imagino aquela fotografia que descrevi e na qual nos revejo a todos. Com um sorriso estranho, forçado e distorcido pela força da realidade com que nos fomos empurrando a todos para este contexto, com a natural apreensão de quem sabe já que a realidade vai alterar-se forçosamente, sem saber muito bem como vai ser possível a superação desta "anomia" que agora começamos todos a viver e que não nos permite (ainda) ver muito bem com que cores será pintado o nosso futuro.