Mariana Costa, Visão on line,

“A alteração artificiosa da quilometragem de um veículo (para menos) ou a sua dissimulação por estabelecimento comercial especializado nesse ramo não pode ser qualificar como prática comercial "normal", "usual" ou "corrente", mera sugestão propiciadora do comércio jurídico (actos de compra e venda) ou como uma forma habilidosa de apresentar a mercadoria, vulgar expediente ou técnica de marketing mais ou menos agressiva”. Ac. do STJ, de 20/Jan/2005 (in «http://www.dgsi.pt», consultado em 05 de Novembro de 2010).
A protecção conferida pelo direito às relações contratuais assenta no princípio da autonomia privada. Este princípio constitui um mecanismo de ordenação da vida em sociedade, através da atribuição, a cada sujeito, da faculdade de estabelecer livremente relações jurídicas com outros sujeitos, bem como de definir as regras pelas quais aquelas se regem.
A autonomia privada é, assim, um instrumento técnico de realização de uma opção valorativa prévia: o reconhecimento de que, a cada pessoa, deve caber o poder de gerir livremente os seus interesses, como forma de promoção da sua personalidade.
Em consequência, entende a ordem jurídica que só há livre estabelecimento de relações jurídicas se e na medida em que a vontade do sujeito se constrói com exacto conhecimento das circunstâncias que a envolvem e sem a intervenção de factores compulsórios externos. Daí que o direito entenda que deve proteger o declarante das consequências potencialmente nefastas que para ele podem advir da vinculação a uma vontade formada de modo deficiente. E existe uma vontade formada de modo deficiente se o seu processo de formação se encontra viciado por motivos anómalos e considerados ilegítimos.
É neste contexto que surge a protecção do declarante cuja vontade se encontra viciada por dolo, isto é, por um engano gerado pelo emprego de qualquer “sugestão ou artifício (...) com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração” ou então pela “dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.” (artigo 253º, n.º1 do Código Civil).
Desta definição é possível, desde logo, distinguir duas modalidades de dolo: o dolo positivo (ou comissivo) e o dolo negativo (ou omissivo).
Quanto ao dolo positivo, ele resulta da utilização consciente de sugestões ou artifícios considerados ilegítimos, que provocam ou mantém o declarante em erro; existe, portanto, um comportamento activo, com vista a criar ou manter um erro. A conduta geradora de dolo activo consubstancia-se, em rigor, numa violação do dever de verdade que impende sobre cada contratante.
Situação distinta se levanta a propósito do dolo omissivo. Aqui o declarante já estava em erro e o declaratário, apesar de se encontrar obrigado a esclarecê-lo, não o fez, intencional ou conscientemente.
A existência de uma situação de dolo, nos termos acima descritos, atribui ao declarante em erro o direito de anular o contrato (preenchidas as condições de relevância previstas no artigo 254.º do Código Civil), precisamente porque este se encontra desprovido do seu fundamento de protecção: a autodeterminação do sujeito.
Porém, nem todo o dolo é censurado pelo nosso ordenamento jurídico. Nos termos do artigo 253º, n.º 2 do Código Civil: “Não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções”. Trata-se da figura do dolus bonus.
Desta forma, não haverá dolo positivo se os artifícios ou sugestões utilizados para induzir o declarante em erro são conformes às concepções dominantes no comércio jurídico e não haverá dolo omissivo, se nenhum dever de elucidar o declarante resulta da lei, de estipulação negocial ou das referidas concepções dominantes.
Atente-se, no entanto, que quando a lei faz referência às concepções dominantes no comércio jurídico não está a remeter para a conduta habitual dos comerciantes, mas sim para o entendimento generalizado nas práticas comerciais do que deve e não deve ser feito, ou melhor, do que pode ou não pode ser feito em matéria de deveres de informação e verdade, respeitando o sentimento e consciência generalizada da comunidade jurídica acerca das fronteiras de censura. Assim e citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Setembro de 2007 (in «http://www.dgsi.pt», consultado em 05 de Novembro de 2010), “se o exagero por um comerciante das qualidades da sua mercadoria pode cair na previsão do nº 2 do art. 253º do CC (dolus bonus), já o mesmo não acontece quando o comerciante enaltece ou atribui à sua mercadoria qualidades que sabe não existirem, que sabe que esta não possui”.