António João Maia, Jornal i

O importante deixou de ser a pessoa do cliente, mas o valor do que consome

 

Há dias combinei encontrar-me com dois amigos que já não via há algum tempo para, numa pastelaria do centro de Lisboa e ao final da tarde, pormos a conversa em dia e tomarmos um café.

Acabei por me encontrar com um deles junto das imediações da dita pastelaria e, depois de entrarmos, vimos que a nossa amiga já nos esperava sentada numa mesa, a tomar um chá. Enquanto nos cumprimentávamos todos, o empregado que servia as mesas abeirou-se de nós para saber o que pretendíamos tomar. Pedimos ambos uma empada e um café, a que eu adicionei “e um copo com água”.

Instantes depois, enquanto conversávamos, o mesmo empregado trouxe-nos as empadas e os cafés e, quando já virava costas, eu disse-lhe “desculpe senhor, mas esqueceu-se do meu copo com água”, ao que, de imediato, a nossa amiga que tomava o seu chá disse também “já agora traga também o meu, que lhe pedi há pouco”. Pouco depois tínhamos os dois copos com água na nossa mesa.

Estivemos depois ali os três a conversar, talvez mais de uma hora e, como será bom de ver, nenhum de nós fez qualquer comentário sobre os copos com água, até porque naquele momento tínhamos temas de conversa para desembrulhar bem mais interessantes do que qualquer copo com água.

Mais tarde, quando regressava a casa, acabei por rever a cena e refletir, de mim para mim, sobre ela. Constatei então que esta não tinha sido a primeira nem a segunda vez – e provavelmente não será a última – em que o esquecimento do “copo com água” tinha sucedido. E não estou a referir-me à mesma pastelaria. A cena me já aconteceu em diversas pastelarias e cafés, mesmo noutras cidades.

Não sei se o leitor tem a mesma experiência ou sequer se repara nestas insignificâncias. De todo o modo parecem-me ser mais do que meras coincidências. Em meu entender elas traduzem uma questão de atitude – o importante deixou de ser a pessoa do cliente, mas o valor do que consome…

É verdade que as pastelarias centrais das cidades costumam ter uma movimentação considerável de pessoas, muitas vezes apressadas, para tomar um simples café de fugida, o que torna o trabalho dos empregados numa verdadeira correria. E, neste contexto, é perfeitamente aceitável e até admissível que possam esquecer algum dos nossos pedidos. Porém não é menos verdade que em regra não se esquecem de muito mais coisas do que o tal copo com água. Seria interessante que um dia trouxessem o copo com água mas esquecessem o resto – o café e o salgado…

É que, e este é o ponto central que quero focar, o copo com água não tem nenhum valor monetário associado. Ele custa zero ao cliente e traduz a entrada de zero na linha das receitas. E os estabelecimentos estão ali para gerar rendimentos a quem os detém – o investidor – e para suportar os salários dos que neles trabalham. Percebo perfeitamente que é assim que o mundo funciona e que tudo fora disto seja pura ficção ou sonho. Mas, como dizia na última crónica que partilhei neste espaço em 22 de agosto – o elo perdido –, a economia e as regras de mercado não podem funcionar só focadas no lucro. Elas existem essencialmente para servir as pessoas. Foi esse o fundamento do seu aparecimento e não podemos deixar que a deia do lucro o subverta, ou sequer que o coloque em segundo plano, sob pena de, no limite, recusarmos dar um simples copo de água a alguém que não tenha dinheiro para adquirir qualquer coisa para comer…

As pessoas e a dignidade humana devem continuar a ser e a estar no centro do jogo da vida em sociedade…