António João Maia, Visão on line,
"Panem et Circenses", que é como quem diz "Pão e Circo", escrevia Júnio Juvenal no séc. I, na Sátira X a propósito do modelo de sustentação político criado por Roma para a manutenção da ordem social do Império. Na prática esse modelo correspondia à garantia da existência de comida e diversão para o povo, com o objectivo de apaziguar eventuais movimentos de insatisfação social contra os governantes e as suas políticas. A leitura de Juvenal corresponde a uma das primeiras e mais profundas críticas que se conhecem acerca do funcionamento do sistema político, nomeadamente das estratégias que este vai encontrando para se perpetuar, suportado pela massa amorfa que constitui o povo.
Ao olharmos para as sociedades de hoje, ou seja vinte séculos depois, não será difícil chegarmos à conclusão que, neste particular, pouco ou nada parece ter mudado.
Creio que não se possa sustentar que este tipo de estratégia seja deliberada, como porventura não o terá sido em Roma. Porém e uma vez que acaba por se manifestar, o efeito "Pão e Circo" tem servido os intentos das classes políticas (pelo menos de algumas franjas menos escrupulosas), enquanto modelo de manutenção da coesão social. Invariavelmente, constatamos que as sociedades acabam por reproduzir sistematicamente este modelo (chamemos-lhe "modelo Pão e Circo").
Damos hoje atenção particular a este tema face à crise económica e financeira em que nos encontramos mergulhados e, por outro lado, por vivermos num quadro político de Democracia, que assenta todo ele no poder soberano do povo.
Por vezes interrogo-me até que ponto são fornecidos ao povo os dados esclarecedores minimamente objectivos que lhe permitam tomar, nos momentos das votações, as melhores decisões para o seu próprio futuro? Até que ponto está o povo preparado e interessado em conhecer tais dados? Um povo que viva numa lógica de "Pão e Circo" estará efectivamente à altura das responsabilidades que uma verdadeira Democracia exige? Estará na posse do mínimo de informação clara e objectiva sobre a realidade acerca da qual é chamado a pronunciar-se? Eu, por mim, tenho algumas reservas…
Porém e contrariamente ao que possa pensar-se, a culpa deste estado de coisas não está no povo. A culpa, se existe (reafirmo que, apesar de poder revelar-se útil a alguns em determinados contextos, a estratégia "Pão e Circo" não aparenta ser deliberada), tem sido das sucessivas elites políticas que, pelas mais variadas razões e um pouco por todo o lado, se têm abstido de implementar políticas tendentes à preparação de cidadãos mais interessados, preocupados, com espírito objectivamente critico e participativos das grandes decisões relativas à sociedade de que fazem parte.
Estamos em crer que a elevação destes índices de esclarecimento junto do povo teria como resultado directo o incremento da qualidade dos políticos, dos seus projectos e das políticas que colocariam em prática. Doutra forma, continuaremos a correr o sério risco de a crise ser, aos olhos de grande parte dos cidadãos, algo que serve apenas para alimentar discursos e debates políticos, mas sem qualquer correspondência com a realidade da vida de cada um de nós.
Para estes cidadãos (que presumimos seja um grande franja, porventura a maioria das pessoas) a possibilidade de aquisição e consumo de produtos alimentares (ainda que por vezes de menor qualidade), o consumo das novelas e do futebol, acompanhados de umas Cervejinhas e Tremoços (o "Pão e o Circo") são razões suficientes para o enquadramento de toda uma lógica de vida. Para estes, as discussões políticas (sobre a crise ou sobre outro qualquer assunto) são algo que ignoram porque simplesmente não entendem o discurso, nem a argumentação, nem, sobretudo, porque nem sequer imaginam (longe disso) que os efeitos de más opções políticas (que num sistema democrático também dependem de si) possam vir a tornar-se nefastos sobre a qualidade da sua (nossa) própria existência.
Finalizo com a descrição de um episódio que há dias tive oportunidade de testemunhar e ilustra bem a problemática que procuro evidenciar:
Estava a almoçar com alguns familiares meus num pequeno mas barulhento restaurante do bairro onde resido, todos na companhia de uma televisão que, dada a hora, transmitia as notícias da hora de almoço. Dada a hora, a sala estava cheia de gente das mais variadas origens sociais. Professores (o restaurante situa-se nas proximidades de uma escola secundária), funcionários do município (situa-se também ali próximo um departamento municipal) e empregados de uma fábrica, contavam-se entre a maioria dos presentes. Enquanto todos comíamos e falávamos (alguns em alto e bom som), o locutor das notícias lá ia desembrulhando e mostrando os avanços e recuos de governo e oposição na procura de soluções para a nossa crise. Depois passou pelo noticiário internacional, que incluía também a crise económica e financeira, que alastra um pouco por todo o mundo, com referências a aumentos de deficits e de despesas públicas. Tudo passou ao lado dos comensais. Eu e talvez mais um ou outro mais interessado, tivemos de fazer algum esforço auditivo para conseguirmos perceber algumas das palavras que vinham da TV. Repentinamente o ruído na sala reduziu-se a quase um sussurro. A TV e o senhor que dava as novas tornavam-se o centro das atenções para a grande maioria dos presentes. Noticiava-se agora os maus resultados dos últimos jogos da selecção nacional de futebol. Os jogadores que pior tinham jogado, os golos falhados e as reacções de treinador e dirigentes. Terminada a notícia, os discursos voltaram a subir de tom, mas em muitas das mesas, o tema que anteriormente tinha sido focado, ficou esquecido. Dera lugar ao futebol e aos problemas que grassavam na Federação.
Terminei a refeição a comentar com o meu irmão, enquanto bebíamos o café, que bem vistas as coisas a malta quer mesmo é "Pão e Circo", uns (o cidadão anónimo) porque assim anda entretido, e outros (os políticos) porque assim estão com a vida de certa forma mais facilitada.
O problema, para concluir esta reflexão, é que se nada for feito para alterar esta evidência, tendemos a manter grandes margens de manobra para a demagogia. Uma sociedade esclarecida é necessariamente mais exigente (pelo menos possui esse potencial), e um maior grau de exigência traduzir-se-á em melhores políticos e em melhores políticas, com os correspondentes efeitos benéficos para todos.
Em pleno século XXI, numa ocasião em que celebramos 100 anos sobre a implantação da República e a Democracia está já implementada entre nós há mais de três décadas, seria útil que a sociedade portuguesa fizesse uma reflexão profunda e ampla também sobre esta vertente da maturidade democrática.