José António Moreira, Visão on line,,

[Cenário: estabelecimento urbano, impessoal, amplamente iluminado]
1º ACTO: A COMPRA
Entra. É a primeira vez que utiliza aquele estabelecimento para mandar executar um par de óculos. Quer resolver rapidamente o assunto, que anda a adiar de dia para dia. Explica à funcionária que o atende que, dado o pouco uso a dar aos óculos, quer um produto que, dentro das especificidades técnicas prescritas, seja em conta. Escolhe a armação, modesta. O orçamento dos óculos, que quase chega às três centenas de euros, fá-lo mexer-se desconfortavelmente na cadeira. "É o mais barato que temos", diz a funcionária com o ar mais inocente do mundo, "têm de ser destas lentes". A insistência de que tinha de ser algo mais barato não altera o discurso da funcionária, a não ser que, a título excepcional, faz dez por cento de desconto.
Mais uma investida do cliente. Pergunta-lhe se não continua em vigor a campanha promocional do estabelecimento e marca "Na compra de uns óculos graduados, grátis o segundo par", que uma conhecida actriz publicita na Tv. "Sim, se quiser … oferecemos-lhe um segundo par … mas se a armação que escolher tiver preço superior a sessenta euros terá de pagar o excedente", responde ela um pouco desconfortável.
Não tem alternativa. Quer resolver a compra naquele dia. Face à recusa da funcionária em trocar essa oferta por um acréscimo de desconto, escolhe uma outra armação, dentro do limite referido, concretiza a transacção e efectua o pagamento.
[Na data prometida pela funcionária, não recebe o prometido telefonema para ir levantar os óculos. Nem no dia seguinte, nem no outro. Os dias de espera sucedem-se, sem notícias]
2º ACTO: A RECEPÇÃO DO PRODUTO
Volta ao estabelecimento. Semana e meia depois. "Chegaram mesmo há bocadinho", disseram-lhe. Passam-lhe para as mãos um saco de papel com os dois pares de óculos. Abre o dito saco, despeja as caixas que ele contém em cima do balcão. Experimenta os primeiros óculos, lendo num folheto que está em cima do balcão. Experimenta o outro par, o da oferta, do mesmo modo, mas a visão que tem é diferente. Quase como se as lentes estivessem baças. Pede para as limparem, o efeito mantém-se. Pergunta à funcionária se as lentes de ambos os pares de óculos são iguais. "Iguaizinhas", responde-lhe, olhos-nos-olhos. Acredita.
[Descobre, mais tarde, que as lentes do segundo par não são iguais às do primeiro. Nas especificidades técnicas e na qualidade]
3º ACTO: O "CLIENTE MENTIROSO"
Volta ao estabelecimento. Reclama. Reclama, porque lhe mentiram, o enganaram. Reclama, porque não foi aquilo que comprou. Reclama, porque ninguém o avisou de que as lentes do segundo par não seriam iguais às do primeiro.
[Vira-se para a plateia e indaga: passaria pela cabeça de alguém o pensamento de que as lentes do segundo par não fossem iguais às prescritas?]
Chamam-lhe mentiroso. A gerente da loja afiança que a sua funcionária o tinha avisado no acto da compra. Não o avisara, obviamente. Havia testemunha. Diz-lhe que se acha enganado, refere-se à publicidade da empresa.
[o 3º acto termina em diálogo]
- Mas compreenderá que em publicidade não se pode dar toda a informação, sob pena de ela não funcionar. - diz a gerente da loja.
- Desculpe, minha senhora - diz com voz pausada, incrédulo quanto ao que ouvia -, mas o que me está a dizer é que a vossa empresa faz publicidade enganosa.
- O senhor chame-lhe como quiser, mas a publicidade funciona desse modo.
[Uma semana de pausa, para o estabelecimento negar provimento à reclamação verbal que interpôs]
4º E ÚLTIMO ACTO: O LIVRO DAS RECLAMAÇÕES
Volta ao estabelecimento. Está nervoso. Sente que está a perder tempo. Pede o livro das reclamações, que lhe é fornecido com desdém e um leve sorriso trocista. [Como se à partida soubessem que por esse lado não vinha mal ao mundo.] Sente-se melhor depois de ter rascunhado a história, em parcas linhas. Espera que a autoridade competente possa fazer algo. Não por si, porque já levara o prejuízo incorrido a custo de mais uma lição de vida sobre o modo como funciona o mundo real; mas para evitar futuras vítimas daquilo que considera ser publicidade enganosa.
[Cai o pano, silencioso, como silenciosa estava a plateia vazia]
Em tempo, o que ficou por dizer:
- O estabelecimento tem um nome: Loja Multiópticas, MaiaShopping, 4470 Maia.
- Segundo a respectiva gerente, nunca antes algum cliente havia feito reclamação semelhante. A ser verdade, é caso para dizer que anda meio mundo cego, a ser enganado por uns quantos espertos.
- A publicidade enganosa é um instrumento de fraude.