José António Moreira, Visão on line,

1. O caso "Face Oculta" tem sido o entretenimento público do Outono de 2009. Não fora a gravidade social que se lhe reconhece, poderíamos vê-lo como uma novela de primeira água, com um enredo que nem aos mais imaginosos argumentistas ocorreria.
O "segredo de justiça", de há muito moribundo, acabou por levar mais uma machadada. A última, antes das que se lhe seguirão. A facilidade com que se "penduraram" no pelourinho os arguidos do caso é sintomática da devassa a que os processos que o constituem estão sujeitos. Dá a impressão, para quem está de fora a assistir, que tais processos estão num qualquer vão de escada, em cima de uma secretária, ao alcance da curiosidade de quem passa. Mas não estão, obviamente (penso eu). O que significa que apenas um reduzido número de pessoas terá acesso ao respectivo conteúdo. Portanto, cada um de nós, espectadores involuntários, poderia esperar que, nesse universo pessoal restrito, haveria boas hipóteses da tradicional comissão de inquérito, que nestes casos de violação do segredo de justiça sempre é nomeada, poder detectar os culpados pela fuga de informação. Nada mais errado. Nunca se chega a conclusão alguma. E este caso também não será diferente.
2. O senhor José é um cidadão português, com todos os impostos em dia, que nunca deixou de exercer o seu direito de voto. Aqui há uns meses, em véspera de eleições, os serviços camarários decidiram finalmente levar a luz eléctrica à rua onde mora. E aconteceu que um dos postes de chapa zincada que zelosos funcionários andaram por lá a plantar foi erigido em frente à entrada do seu terreiro, impossibilitando-o de manobrar com o seu tractor. Bem protestou com tais funcionários mas de nada lhe valeu. Era ali o ponto de implantação, porque assim rezava o projecto, e não havia nada a fazer. Foi à Junta de Freguesia, foi à Câmara Municipal, gastou tempo e paciência sem qualquer proveito visível. Tinham passado as eleições. Se lhe escutavam o queixume, não lhe resolviam o problema; se nem sequer o escutavam, muito menos lhe faziam justiça. E foi então que, aconselhado por um compadre mais familiarizado com o modo como se conseguem resolver os problemas, decidiu telefonar para as televisões. E aí está ele, no ecrã, descontraído, a barba por fazer e o ar suado de quem voltara há pouco do campo, a expor o seu caso publicamente. O resto da história já o leitor conhece, de outras parecidas. Foi em três tempos que o seu problema foi resolvido.
3. Pois quando vi a devassa do caso "Face Oculta" na praça pública não pude deixar de me lembrar da situação do senhor José, e do modo como ele conseguiu que lhe fizessem "justiça". Ocorreu-me então pensar se toda a fuga de informação não seria uma atitude deliberada dos muitos e dedicados investigadores que, dando o melhor de si mesmos no levantamento de mais um caso, têm a consciência de que ou fazem algo (mesmo que ilegal) que possa salvar o seu esforço ou então, mais uma vez, vai tudo "pelo cano abaixo". Eles sabem melhor que ninguém que o sistema de justiça perro, as lacunas da Lei e as vírgulas colocadas a preceito nos diplomas legais, são ingredientes que, misturados pelos mais imaginosos advogados da praça, concorrerão para que nunca mais se apurem responsabilidades e todos os prazos acabem por caducar. Que fazer? "Chamam-se" as televisões. Aí está.
4. É um mau pensamento, reconheço. Mas não consigo deixar de ser eu mesmo, pensando como uma pessoa que não acredita na justiça portuguesa. Fico triste. Primeiro, porque os nossos investigadores mereciam melhor sorte para o esforço que colocam no seu trabalho. Segundo, porque neste caso eles têm uma desvantagem relativamente ao senhor José, que é o facto de dentro de dias, quando um novo caso vier à superfície e muito antes de haver qualquer decisão judicial, a opinião pública e os medias que a mantêm informada se desinteressarem da "Face Oculta". Terceiro, porque qualquer dos arguidos, mesmo se inocente, nunca mais se verá livre das cicatrizes causadas pela exposição no pelourinho.
Fico triste. Tudo podia ser diferente, para melhor, se em Portugal a Justiça funcionasse.