Carlos Pimenta, Visão on line,
1. Os prémios aos gestores estão no centro das atenções. A Visão de 20 de Agosto, reproduzindo Le Nouvel Observateur, fazia uma análise multidimensional dos prémios a gestores e correctores, juntando-se ao coro de muitos órgãos de informação. Toma como protótipo Andrew Hall, a quem o Citigroup, ajudado pelo Estado durante a crise, pagou 100 milhões de dólares no final do ano passado de salário e bónus, referente ao último semestre. O G20 aborda explicitamente a situação e engloba entre as suas declarações a preocupação em conter os prémios aos gestores, reproduzida em cada país pelos respectivos dirigentes políticos.
Embora estas preocupações se pudessem aplicar a qualquer sector de actividade, a qualquer empresa, as declarações e as polémicas têm-se centrado sobre o sector bancário. Porque é aí que se têm verificado recentemente a maior incidência destas práticas, enquanto a agricultura, a indústria e outros serviços ainda defrontam grandes dificuldades económicas e continuam a fazer engrossar a torrente do desemprego. Porque os bancos estiveram no cerne da actual crise e foram os cidadãos e as instituições honestas ( os que não fogem aos impostos ou utilizam os offshores), que os mantiveram em funcionamento através dos apoios estatais. Porque coloca dilemas éticos, e estes parecem estar directamente relacionados com a crise, havendo quem afirme que "esta crise teve a ver com falta de ética" (Pedro Santa Clara, citado em "Novos gestores sujeitos a juramento de ética", Jornal Económico).
A este assunto há que acrescentar uma outra dimensão do problema, referida na literatura de gestão de fraude: a conexão entre a fraude organizacional, praticada pelas empresas, e os referidos bónus à administração. Concomitantemente vários casos (como o do Madoff) recordam que por vezes os "génios" da "engenharia financeira" mais não são do que defraudadores socialmente bem posicionados e geniais na arte de se apropriarem do alheio.
Procuramos aqui fazer um sobrevoo sobre a probabilidade de fraude associada aos milionários bónus aos empresários, não sem antes fazer algumas referências às problemáticas de fundo que estão em causa.
2. Desde meados da década de oitenta do século passado que se foi construindo uma forma de organização da sociedade assente na aceleração do estreitamento das relações económicas entre os homens e os mercados (mundialização), na generalização dos modos de funcionamento do capitalismo americano a todos os espaços - ora integrando e uniformizando a acumulação económica mundial ora desarticulando as sociedades marginalizadas - promovendo e incutindo um conjunto de valores assentes numa leitura exacebada da liberdade individual e da livre iniciativa empresarial. As empresas multinacionais reforçaram a sua importância na economia mundial, modificaram as suas formas de organização e comportamento às escalas nacional e internacional, conduzindo, pela sua relevância, a uma "empresarização" da economia mundial.
Este processo foi acompanhado de uma crescente importância das relações monetárias e de crédito, em detrimento da relevância da produção e da troca de bens e serviços. Essa financiarização da economia traduziu-se num empolamento do capital bancário, das bolsas de valores, num brutal aumento da percentagem de operações financeiras e bolsistas totalmente desligadas da actividade produtiva (capital fictício), criando um processo que não só se auto-alimentava como também funcionava como atractor de recursos, retirados frequentemente dos sectores produtivos e das condições indispensáveis à coesão social e à cidadania.
A investigação conduzida em torno destas problemáticas (Globalização: produção, capital fictício e redistribuição, 2004), permitiu-me concluir que o empolamento do capital financeiro, nomeadamente do capital fictício, tinha fortes probabilidades de estar interligado ao simultâneo aumento, durante essas mesmas décadas, da economia "sombra", da economia que não é registada na contabilidade nacional. O aumento do capital fictício é uma face da moeda que tem na outra a fuga aos impostos e às contribuições sociais, a produção e troca de bens e serviços ilegais (da droga aos órgãos humanos, das armas e mercenários à escravatura, etc.) e as actividades informais.
Porque todos os actos individuais, institucionais e sociais fazem parte, com maior ou menor autonomia, dessa dinâmica global da organização capitalista mundial e porque cada homem molda o todo mas também é por ele moldado, foi inevitável associar a situação que se viveu durante esse período que "terminou" com a actual crise, a uma degenerescência das relações éticas. Esta manifestou-se pela exacerbação do egoísmo, pelo enfraquecimento das responsabilidades sociais, pela inversão das referências: o egoísmo só permite a emergência das regras sociais se tiver estímulos (económicos) para tal.
Porque o hiato estrutural, em ampliação, entre o capital fictício e a produção era insustentável a longo prazo, a sua interrupção era inevitável. Uma das formas que essa ruptura poderia assumir era a de uma crise. A crise de sobreprodução aí está, aberta pela crise financeira.
3. As crises são sempre momentos de ruptura e de continuidade.
Ruptura porque a dureza da realidade social sobrepõe-se aos modelos idílicos de economistas e sociólogos, porque há a "evidência" dos erros cometidos, porque a correlação de forças social exige intervenções mais ou menos profundas das instituições políticas, porque a própria reprodução das relações sociais, a continuidade do sistema, obriga à superação de alguns dos conflitos, por vezes insanáveis.
De facto, nos últimos dois anos surgiram diversas manifestações de ruptura, de que podem ser exemplos, isolados mas significativos, o reconhecimento por Alan Greenspan de que muitas práticas económicas por ele estimuladas, quando era responsável pela Reserva Federal Americana, tinham sido incorrectas e geradoras da crise, e o agendamento da eliminação, ou do controle, das offshores nas reuniões do G8 e G20 (ver crónica anterior "Crónica de uma metamorfose anunciada: Offshores").
Mas também são períodos de continuidade porque o período anterior à crise criou poderes que pretendem e têm capacidade de se reproduzirem, porque as ideologias tendem a perpetuar-se, mesmo irracionalmente e à custa de grandes lapsos de memória, porque os Estados e os organismos internacionais reflectem a correlação de forças social.
O volume da intervenção estatal nos bancos, em parte necessária, mas reduzindo drasticamente as possibilidades de apoio aos outros sectores de actividade e a viabilidade de uma série política de emprego e de apoio social, assim como a continuação da prioridade da ajuda ao sector financeiro nas declarações finais das cimeiras dos "donos do mundo" têm sido aspectos inequívocos da lógica de continuidade.
A actual crise tem sido frequentemente comparada à de 1929/33. É uma comparação lógica e pedagógica. Também frequentemente tem sido afirmado, correctamente e em reforço do discurso "politicamente correcto", que há uma diferença fundamental: desde então apreendeu-se como intervir e hoje há uma capacidade de coordenação mundial que então era quase impensável. Contudo há uma outra diferença crucial: no fim da década vinte do século passado todos tinham bem presente a recente revolução russa de 1917 e o perigo que pairava sobre a continuidade do sistema capitalista, sobretudo quando a miséria se agravava e o descontentamento popular eclodia. Enfim, porque os economistas e os políticos aprenderam, porque hoje a sociedade está mundializada, porque não há ameaças de combate contra o sistema capitalista, as tendências de continuidade tendem a ser mais poderosas que as de ruptura.
As elevadas remunerações e os prémios aos conselhos de administração, a importância que isso assume no sector financeiro, mas não só, é um fortíssimo sinal de que a tendência para retomar a situação anterior, para se voltar ao empolamento do capital fictício em relação às actividades produtivas, para se continuar a montar os elos de ligação entre a economia "sombra" e a economia legal (vulgo "branqueamento de capital"), para se retomar a degenerescência das relações éticas, é muito forte.
Cada um avaliará, segundo as suas opiniões e posição social, as vantagens e as desvantagens de uma tal tendência de evolução.
Do ponto de vista da gestão de fraude, assunto de que nos ocuparemos no ponto seguinte, a realidade manifesta-se com toda a evidência: dos anos oitenta até à crise aumentou a economia "sombra" em todos os países e à escala mundial, diluiu-se a honra, aumentou o número e o volume das fraudes. Algumas só se revelaram com a crise, mas o seu aparecimento e prática foram forjados no período anterior.
4. Os prémios aos administradores das empresas, no fim do ano, ou em períodos mais curtos, podem ter efeitos de atracção dos melhores quadros ou estimular um desempenho mais atento das suas funções. Admitamos esses factos, apresentados como justificativos, mas eles são pouco relevantes do ponto de vista da fraude. Só o são na medida em que o estudo do perfil dos defraudadores aponta a coexistência de um conjunto de características pessoais que também são típicas dos gurus da administração. Como diz um relatório da PricewaterhouseCoopers (Investigations and Forensic Services, 2007:18) muitos dos defraudadores são o tipo de funcionário que as empresas actuais anseiam ter.
Os prémios milionários introduzem uma dimensão de curto prazo, uma prevalência dos resultados imediatos, frequentemente em detrimento da estratégia de médio e longo prazo. A forte concorrência internacional pode exigir um olhar atento sobre o presente, em detrimento de um prazo que deixou de ser referência de mobilização nas sociedades ocidentais, mas não pode fazer esquecer um futuro mais longínquo, mais estruturante.
Pressiona à existência de bons resultados quando da apresentação dos relatórios e contas. A valoração da empresa na base das cotações bolsistas, a dificuldade de quantificação de diversas rubricas do balanço, a margem de variabilidade na determinação do "valor de mercado" e o engenho e arte na manipulação da legislação cria condições legais, não forçosamente éticas, para se influenciar os lucros da empresa. Da legalidade até à fronteira legalmente dúbia a distância é pequena e possível de trilhar. Cria propensões para práticas ilegais nas bolsas de valores ou nos registos contabilísticos, para a apresentação de resultados falsos. As organizações da empresa e da holding podem ser estruturadas de forma a dificultar a descoberta das fraudes. A auditoria pode ser diplomaticamente condicionada, mesmo quando é formalmente "independente". O marketing da imagem da empresa e da administração, as relações sociais estabelecidas e o envolvimento dos políticos criam uma imagem de respeitabilidade "acima de qualquer suspeita".
Em síntese, os prémios milionários não conduzem à fraude nas empresas ou das empresas, mas aumenta o risco de fraude. Uma fraude ao serviço dos beneficiados, mas que é, pela elevada posição hierárquica que ocupam, da própria empresa.
5. Como é possível combater e prevenir estas situações, isto é, o mais elevado risco de fraude?
O problema não é de agora e nas duas últimas décadas têm sido tomadas diversas medidas legislativas, em contextos tão diferentes como os EUA ou a UE. Não nos atrevendo a negar-lhes qualquer eficácia, as fraudes do tipo que estamos a referir continuaram e atingiram, por vezes, dimensões crescentes.
Muitos políticos aproveitam o choque psicológico que os elevados montantes dos bónus provocam nos cidadãos que dificilmente conseguem ter dinheiro no fim do mês (importante sector do eleitorado) para proclamarem princípios e intenções, dificilmente traduzíveis em acções. Complementarmente sonham com novas leis, mesmo que não façam sentido ou o sistema judicial não esteja preparado para tal.
Afirmar que "o mercado corrigirá sem piedade qualquer tentação de uma gestão distorcida pela avidez dos prémios" (Joaquim Ferreira do Amaral, Económico Weekend, 26/9) é ter esperanças vãs e ser incapaz de aprender, mais que não seja, com a actual crise. O mercado, essa realidade mítica invocada em vão, é eventualmente capaz de "corrigir" essas situações, mas muito provavelmente entregando a "factura" a quem só teve a responsabilidade de trabalhar e de o fazer com dignidade.
Faz mais sentido afirmar que os prémios dos gestores é um assunto da competência dos accionistas. Estudos demonstram que nas empresas com maior concentração do capital, sobretudo quando historicamente a propriedade pertence a uma família, a probabilidade de fraude perpetrada pela administração é menor. O controlo dos accionistas exerce-se e impõe regras aos conselhos de administração. Pode ser um controlo eficaz, mas também exige algumas ressalvas:
* Haver um controlo dos accionistas não significa que o controlo deva ser exclusivamente deles. As empresas são parte do tecido económico-social e têm responsabilidades perante os restantes intervenientes nesse espaço. Recorde-se que as remunerações pagas por muitas empresas são maiores que o produto interno de países desenvolvidos. Por isso os prémios milionários têm impactos sociais vários que podem aconselhar outras tutelas. Quando as empresas são apoiadas com dinheiros públicos ainda é maior a sua responsabilidade perante os outros e a exigência de um controlo e regulação.
* O controlo dos accionistas faz sentido, mas só poderá ser viável e totalmente eficaz se eles tiverem condições para avaliação plena da empresa (a fraude sendo uma actuação dissimulada dificulta-o), se o bónus e a distribuição de lucros não forem concomitantes, se em muitos aspectos os accionistas não estiverem dependentes dos próprios administradores (resultado de uma teia de "favores" realizados por estes a aquele). Muitos estudos mostram a importância crescente da tecnocracia e dos gestores em relação aos proprietários do capital.
Estamos perante uma situação inevitável sem viabilidade de resolução? Certamente que não.
Limitei-me a contribuir para o esclarecimento do problema lembrando que a economia "sombra" e a fraude são realidades presentes do nosso quotidiano, mesmo quando as pretendemos ignorar.