Orlando Mascarenhas, Visão on line,

Aos cidadãos é-lhes ensinado que o Estado garante os devidos cuidados com a sua segurança.

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Nos últimos anos, por vezes com alguma acutilância e por outras de uma forma vaga e sem qualquer consistência, surge a público a intenção de governos e de partidos da oposição - independentemente da posição política em que qualquer um destes intervenientes se encontre, isto é, ou estando no governo ou aspirando a tal - de reformular, reestruturar, remodelar, ou qualquer outro mecanismo, que traduza uma unificação do aparelho policial no nosso país.

Juntos, tendo como base esta formulação, pensemos.

A edificação do Estado Social, na primeira parte do séc XIX, criou lealdades, pois aquelas pessoas que não podiam resguardar-se na segurança dos “senhores”, foram protegidas pela atuação da segurança social e dos serviços públicos. A normalidade indireta, a do Direito Estatal, ganhava legitimidade. Assistia-se também a uma difusão de vigilância estatal nos espaços públicos.

Após a II Guerra Mundial, ou seja, acabada a reconstrução, esta tendência mudou. A exclusão duradoura do mercado de trabalho e/ou os salários precários, conduziram a uma importante onda de desproteção – cada vez mais pessoas abandonadas à sua própria sorte, rompiam as malhas da rede da proteção social e dos serviços públicos. Como resultado, a legitimidade das normatividades estatais diminuiu consideravelmente, sem que as normatividades diretas, muito fracionadas, fossem capazes de substitui-las.

A falta de meios materiais juntou-se a uma necessidade de ostentação, sentida em vastos elementos da estrutura social, tendo favorecido uma delinquência de predação em larga escala, a qual foi facilitada também por um enfraquecimento da vigilância.

Numa forma mais ampla, o enfraquecimento da autoridade pública e da legitimidade, autorizaram uma certa brutalização das relações sociais, tendo as zonas de exclusão social passado a testemunhar manifestações de violência, em especial por parte dos jovens, contra tudo o que representava a sociedade organizada. Trata-se de violência de baixa intensidade, contudo suscitam reações muito fortes de insegurança.

O aparelho estatal reage a esta insegurança, entre outras formas, com os seus mecanismos de repressão penal. Para melhor o compreendermos, temos de entender e tratar igualmente quer da prevenção do crime e da ordem pública, como também da proatividade e reatividade do aparelho policial, instrumentos de excelência no controle e combate à insegurança dos cidadãos de que os Estados possuem ao seu dispor.

Os programas de prevenção e ordem pública constituem tanto uma alternativa quanto um complemento à repressão; a própria repressão pretende perseguir um objetivo de prevenção da reincidência.

A proatividade do aparelho policial, e entenda-se aqui todas as forças que no âmbito das suas missões exercem uma função de polícia, habitualmente centra-se em infrações sem vítima, pelo menos direta, tais como a circulação rodoviária, a imigração ilegal, ou a distribuição de produtos proibidos. Nestes casos os autores das infrações são numerosos, resistem mal à observação e vigilância das forças e serviços de segurança e têm dificuldade em se dissimular atrás do anonimato protetor. Nestas situações estamos perante uma delinquência que é “descoberta” pelas forças e serviços de segurança.

Quanto à reatividade desse mesmo aparelho policial, traduz-se nas situações em que as forças e serviços de segurança recebem a informação sobre as infrações de uma terceira parte.

As denúncias que chegam às polícias através de vítimas – ofensas à integridade física, furtos, roubos e outras – raramente são acompanhadas de elementos suficientes para quem delas se encarrega. Só num número muito diminuto é que o suspeito se encontra identificado ou existem elementos que permitam a identificação do mesmo. Resolver estas situações supõe um enorme esforço, daí que só recebem a atenção suficiente aquelas cuja “gravidade” é atribuída pelo profissional que está incumbido na sua resolução ou, pela prioridade que a hierarquia onde o profissional se encontra inserido confere à mesma. A violência física, quando suficientemente séria, ainda é acolhida pelos profissionais e respetivas hierarquias, pois o número de casos é limitado e a vítima é capaz, por vezes, em identificar o autor, acrescendo o facto de que aumenta o estatuto de qualidade de quem as resolve.

No que às infrações patrimoniais diz respeito, sendo estas em número muito elevado e com raros elementos sobre a identificação do autor, concorrem para o mesmo fim, de não investimento na sua resolução, o facto de não existir a atribuição de prestígio profissional para quem lida com estas situações.

Estamos assim perante uma situação paradoxal.

Aos cidadãos é-lhes ensinado que o Estado garante os devidos cuidados com a sua segurança. Os furtos, roubos e ofensas simples são os crimes que mais os ameaçam e pelos quais são mais vitimizados, contribuindo em larga escala para a perceção de insegurança. Porém, não são estas infrações que as polícias com competência para as tratar centram os seus esforços ou atenções.

Como regra geral, as polícias preferem focar-se no tratamento daquilo que elas próprias descobrem por sua iniciativa, em detrimento do que lhes é oferecido por remessas exteriores.

É certo que esse processo é limitado pela necessidade de se conservar um mínimo de imagem de serviço público, de serviço para o público, contudo, quanto mais centralizada for uma organização policial, mais ela se afasta da função de bem desempenhar as suas atribuições.

Verifiquemos então o seguinte. No atual contexto nacional e debruçando o pensamento apenas no que à Polícia e Serviços de Informação diz respeito, a segurança interna encontra-se assente em quatro dimensões, a saber: Ordem Pública; Prevenção; Investigação Criminal e Informações (Intelligence). Deixemos por agora de fora a dimensão das Informações.

Concetualizando ordem pública, surge-nos de imediato a ideia de ordem-desordem. Pressupõe a existência prévia de um normativo, a respeito do qual é necessário ordenar-se. A missão das instâncias encarregues da segurança, em especial a Polícia, consiste, neste contexto, em verificar a obediência dos cidadãos à norma e forçar à sujeição da mesma, se disso for necessário.

Quanto à prevenção, esta pressupõe todo um conjunto de medidas de aproximação aos cidadãos, de forma que os mesmos não venham a ser vítimas de atos anti normativos. Podemos dizer que a prevenção surge ex-ante do facto considerado como contrário à lei. Protege o cidadão daqueles que praticam tais atos.

Relativamente à investigação criminal, atua esta após o facto considerado contrário à lei. A investigação criminal, no aparelho policial, é o instrumento de um organismo fundamental e basilar de qualquer Estado, a Justiça. A investigação criminal, como “braço armado” do aparelho judicial, em nada se conjuga com função de prevenção e de ordem pública. Distinta na essência, perfeitamente antagónica na atuação.

Ao falarmos de políticas de segurança, e quando se abordam questões como as mudanças de estrutura organizacionais, uniões ou fusões de polícias, vida e morte de organizações policiais, área tão complexa e importante para a vida dos cidadãos, há que obedecer a quatro requisitos:

  1. Adequada visão e interpretação da realidade, que permita identificar a existência de problemas, sobre os quais se queira obter um conhecimento e sobre os quais se pretende operar;
  2. Analisar esses problemas e submete-los a um processo de estudo, com regras precisas. Analisados e compreendidos, há que reintroduzir os parâmetros estudados na complexa realidade, para verificar se no ponto concreto é possível falar em solução aplicável. A partir dos resultados dessa análise e prospeção, é necessário planear alternativas de ação e recomendações;
  3. Sobre estas recomendações, o passo seguinte é o da tomada de decisões políticas e colocá-las em prática;
  4. Por último, é necessário uma avaliação, para verificar se o resultado que se obteve é o pretendido.

No momento em que nos encontramos, com uma realidade social extremamente complexa, onde abundam os oportunismos e se vive e projeta apenas o imediatismo, com um pensamento apenas centrado, quer a nível nacional como também internacional nos défices dos Estados, com uma fraca ou mesmo inexistente visão e interpretação da realidade, qualquer mudança de estrutura organizacional na área das políticas de segurança, nomeadamente nas polícias, é totalmente suicida, pois julgo nem sequer existir conhecimento suficiente e adequado que permita pensar que já podemos avançar do ponto 1 para o ponto 2, quanto mais, tomar decisões políticas nesta área.