José António Moreira, Visão on line,
1. "satyam", "verdade" em sânscrito. Em 1987 Ramalinga Raju, um jovem empresário indiano, deve ter achado o termo deveras apelativo e passível de penetrar facilmente no mundo globalizado dos negócios. Decidiu inclui-lo no nome da sua novel empresa, a Satyam Computer Services, Ltd. Fosse pelo nome, fosse pelo engenho do empresário, ou por efeito de ambos, o facto é que a empresa, dedicada ao "outsourcing" informático e à venda de "software" empresarial por medida, verificou desde então um crescimento assombroso. Foram 20 anos de contínua ascensão. Os últimos números falam por si: operações em mais de 60 países, mais de 50 000 empregados, volume de negócios superior a mil milhões de dólares por ano, carteira de clientes que inclui as maiores empresas mundiais.O reverso desta história paradigmática de "sucesso" aconteceu, subitamente, no início de Janeiro, quando o presidente e fundador da empresa, Raju, enviou uma carta ao seu conselho de administração dizendo que as contas publicadas pela empresa estavam inflacionadas e que, dos cerca de 1,1 mil milhões de dólares de depósitos e caixa referidos no balanço, cerca de mil milhões pura e simplesmente não existiam, eram um mero registo contabilístico sem suporte real. As acções da empresa, cotadas em várias bolsas, caíram a pique. A Índia entrou em estado de choque ao constatar que o seu ídolo, o "self-made man" Raju, afinal tinha pés de barro.
2. Uma grande fraude, com o ingrediente habitual: perpetrada por uma pessoa que estava acima de qualquer suspeita. Foi assim com Bernard Madoff, muito recentemente, foi agora com Ramalinga Raju. Para se ter ideia da imagem social e empresarial deste homem tenha-se presente que é um filantropo com obra feita na ajuda a populações carenciadas, tem vários doutoramentos "honoris causa", foi eleito em 2007 pela Ernest & Young o empresário do ano. Era considerado, pela população, como sendo modesto e honesto. O que se conhece do "modus operandi" da fraude, a partir da carta que endereçou aos seus administradores, não coloca em causa a sua honestidade pessoal - chegou a tomar empréstimos pessoais para manter a empresa a funcionar -, mas tão só a sua honestidade como empresário. Com efeito, os "buracos" nas contas terão começado, há vários anos, com um pequeno ajuste nos resultados da empresa, de modo a não defraudar as expectativas do mercado bolsista e seus analistas. Aquilo que na gíria se designa por um "dourar dos resultados" e que, com mais frequência do que seria desejável, muitas empresas praticam. O objectivo desse tipo de actuação é, em geral, divulgar resultados superiores aos que a empresa efectivamente verificou no período, a partir de uma escolha criteriosa das regras contabilísticas adoptadas ou, então, de uma escolha do "timing" das transacções. Por exemplo, a contabilização no período corrente ("período 0") de uma venda pertencente ao período seguinte, ou o "atirar" para períodos futuros de custos de operação que seriam de considerar no período a que as contas respeitam. São o tipo de actuação que, em geral, até por falta de uma fronteira bem definida entre o que é fraude e o que é uma actuação dentro das regras contabilísticas geralmente aceites, se considera cair dentro desta última categoria. Daí a pouca importância que se tende a tributar a tais casos, mesmo quando o respectivo impacto é visível para o destinatário da informação. Veja-se, no caso em apreço, que um membro da Bolsa de Bombaim, onde as acções da empresa também estão cotadas, refere que sempre tinha havia a sensação de que a Satyam usava uma "contabilidade criativa" - outro termo correspondente a "dourar dos resultados" -, mas que não se julgava compaginar uma situação de fraude. Isto é, fechavam-se os olhos, descansavam-se as consciências, porque, "apenas", se tratava de "contabilidade criativa".
3. O perigo associado ao uso de criatividade na contabilidade das empresas está naquilo que tecnicamente se designa como "reversão dos efeitos". A contabilidade não cria valor, limitando-se a registar este num ou noutro período, consoante as soluções preconizadas pelo preparador da informação. O valor é criado pelas operações efectuadas pela empresa. Portanto, quando se antecipa a escrituração de resultados num dado período, eles irão faltar no ou nos períodos seguintes. Trata-se de um "empréstimo" de resultados. Voltando ao exemplo anterior, se no período 0 se contabiliza uma venda que pertenceria ao período 1, o volume de negócios deste irá ressentir-se negativamente dessa falta. E aqui duas situações podem ocorrer. Primeira, as vendas do período 1 cresceram independentemente da criatividade aplicada no período 0, e a reversão do efeito manipulativo tende a ser acomodada, passando desapercebida. É este pressuposto de crescimento do negócio que tende a estar presente no espírito de quem adopta este tipo de actuação, assumindo o período 0 como um ano excepcionalmente mau e o período 1 como um ano excepcionalmente bom. Segunda, infelizmente nem sempre tal pressuposto se concretiza e o volume de negócios do período 1 pode ser tão decepcionante ou mais do que o do período anterior. É o que tende a acontecer, por exemplo, em tempos de crise económica e financeira. Agora, a não se fazer nada, o efeito da reversão nos resultados torna-se visível, pois parte daquilo que devia ser reportado como resultado do período 1 já constou do resultado do período anterior. O gestor tem de fazer uma escolha difícil: ou divulga o resultado do período 1 tal como ele é, com todas as consequências que daí podem advir para a cotação das suas acções em bolsa; ou volta a usar de criatividade contabilística, agora para esconder o efeito cumulativo dos maus resultados dos períodos 0 e 1. No caso da Satyam, segundo Ramalinga Raju, esta segunda opção foi escolhida. Tudo começou com um pequeno ajustamento dos resultados, que nos anos seguintes se foi repetindo, procurando esconder uma realidade cada vez mais desfasada dos números contabilísticos divulgados aos investidores em cada período. Portanto, este caso é um exemplo paradigmático de que o uso de criatividade nos números contabilísticos, não legalmente punível e muitas vezes com efeitos iniciais moderados nos resultados, pode vir a ser o embrião de situações de fraude de elevada dimensão. A partir de determinada altura o processo de esconder o "buraco contabilísico-financeiro" deixa de ser controlável, e passa a impor o seu próprio ritmo ao gestor. Isso mesmo pôde comprovar Raju, que descreve tal processo como sendo semelhante ao "cavalgar de um tigre sem saber como sair de cima dele sem ser comido". E tudo começou com um pequeno ajuste contabilístico.
4. Diz-se frequentemente que a "memória das pessoas é curta". Se se admitir que o espaço nela disponível - qual disco de computador - é finito, à medida que nova informação vai sendo registada, haverá que apagar informação antiga. Neste contexto, pode-se aceitar aquela "máxima". Porém, há pessoas que, pelas funções que executam, não podem ter memória curta. Pelo contrário, têm de preservar a memória de situações passadas com vista a dela fazerem uso no tratamento de situações actuais. É o caso dos auditores. Na fraude da Satyam, não saíram bem vistos. Pelo contrário. A pergunta que se faz é como foi possível que ao longo de vários anos as contas da empresa fossem certificadas quando parte dos activos constantes do balanço - e de modo especial os depósitos - não existiam na realidade. Quer os auditores internos, quer os externos (PricewaterhouseCoopers), deixaram passar em branco, de forma sistemática, tal situação. No entanto, o caso Satyam tem muitas semelhanças com o caso do grupo italiano Parmalat, igualmente de triste memória, onde a fraude descoberta em finais de 2003 também estava acantonada em depósitos que não existiam. Em ambos os casos, a gestão dos depósitos estava adstrita a uma única pessoa - na Satyam era ao seu presidente, Raju -, ninguém mais tinha autorização para lhes mexer. Não seria isto motivo de desconfiança para os auditores internos e externos? Conhecidos casos anteriores com contornos semelhantes, não seria de esclarecer a situação? A resposta a estas perguntas é, necessariamente, afirmativa, embora o procedimento concreto tenha sido, como resulta do desfecho conhecido, o oposto. O pior de tudo é que a opinião pública, os mercados financeiros em particular, já parecem ter assumido que os auditores não auditam, que não são confiáveis, mesmo quando se trata de uma Big4. Quase não se comenta a respectiva responsabilidade no caso Satyam. É como se já se tivesse interiorizado que a auditoria às contas é uma daquelas tradições que ninguém sabe por que ou para que existe, mas que se continua a tolerar.
5. As falhas da auditoria têm consequências graves, financeiras e sociais. Mesmo quando os processos judiciais asseguram indemnização por prejuízos, dificilmente compensam todos os prejudicados. As principais vítimas são os pequenos investidores, que vêem desaparecer as poupanças de uma vida, ou os trabalhadores, que perdem o seu posto de trabalho com a falência da empresa. É caso para se dizer: triste sina a de quem é pequeno num mundo cada vez mais tolerante para com os comportamentos eticamente reprováveis dos grandes.