José António Moreira, Visão on line,
1. Bernard Madoff. Até há poucos dias, este nome dizia pouco, ou nada, ao cidadão comum. De repente tornou-se o centro de todas as atenções, de todas as crónicas, de todas as imprecações. A fama (ou infâmia?) associada ao nome tem a ver com o facto de Bernard Madoff, um corretor e gestor de fundos nova-iorquino, ter perpetrado uma das maiores, se não a maior, fraude financeira de todos os tempos. O número avançado é astronómico. Cerca de cinquenta mil milhões de dólares. Um pouco por todo o mundo os indivíduos e instituições afectados vão dando sinal de si. Portugal, e alguns portugueses, também aparecem na lista, embora numa modesta posição, em termos de grandeza. Segundo o Banco de Portugal, que efectuou um levantamento das posições dos investidores nacionais, a exposição nacional à fraude rondará os 85 milhões de euros. No entanto, eu, modesto funcionário público, também me considero vítima desta fraude e, nem por isso, o Banco de Portugal teve em consideração tal facto na sua análise. Limitou-se a somar as potenciais perdas dos ricos (um termo que passou a estar muito em voga ultimamente).
2. O valor da fraude deixa-nos relativamente indiferentes, embora represente cerca de um quarto da riqueza produzida em Portugal durante um ano. Tal indiferença dever-se-á, sem dúvida, ao facto da opinião pública ter vindo a ser anestesiada nos meses mais recentes com números da ordem das centenas de milhares de milhão de dólares, por virtude da crise financeira mundial que se está a viver e das consequentes intervenções que os governos têm efectuado para estimularem a economia e apoiarem o sistema bancário. Tendemos a prestar mais atenção aos detalhes que nos possam fazer perceber como foi concretizada tal fraude, do que à dimensão da mesma. Com efeito, a acreditar no que se ouve e lê nos media, esta fraude parece desafiar aquela velha máxima de que é impossível enganar todos todo o tempo. Não só parece ter-se desenrolado ao longo de dezenas de anos, como foi levada a efeito nas barbas de instituições financeiras, reguladoras e de controlo que julgávamos acima de qualquer possibilidade de serem ludibriadas deste modo e em tal dimensão. Espero, ansiosamente, por detalhes que me façam perceber como tudo aconteceu, pois, no momento, não consigo sequer imaginar o modus operandi da fraude. A minha curiosidade não se inclui no que habitualmente se designa por curiosidade mórbida, isto é, na apetência do ser humano pelos ínfimos detalhes de desastres e catástrofes. Considero que a minha curiosidade é de natureza positiva. Os detalhes de cada fraude, os desta em particular, fornecem informação importante para ajudar a precaver a ocorrência de situações análogas no futuro. Para já, aquilo que parece ser um ingrediente básico desta fraude é a ausência de divisão de funções no negócio de Bernard Madoff: o seu grupo era, simultaneamente, o corrector que fazia as compras e vendas dos activos no mercado e o gestor dos fundos de investimento e das fortunas dos clientes deixadas a seu cargo. Estava criada a condição primeira para que o sistema de controlo interno não funcionasse e, por consequência, o ambiente para a ocorrência da fraude. Ninguém, ou quase, parece ter dado importância a tal facto.
3. "Ganância", do Castelhano ganancia, lucro (dicionário Texto Editores). Em português, o primeiro dos significados propostos para ganância é ambição de ganho. Com o explodir da crise financeira internacional, em Agosto do corrente ano, a origem da mesma foi assacada por determinadas correntes ideológicas à ganância dos banqueiros, que terão forçado a concessão de crédito a quem não tinha condições para o obter. Não fui subscritor de tal explicação. Considerei e considero que a ganância, a ser a razão principal, estava tanto do lado dos banqueiros como de quem tomava os créditos. Basta pensar, por exemplo, que parte do crédito à habitação que veio a ser incorporado nos denominados produtos tóxicos teve por detrás a expectativa dos investidores na valorização dos imóveis a curto prazo. Em minha opinião, todo o ser humano tem o seu bocadinho de ganância. A dimensão desse bocadinho, ou o modo como este é controlado, dependerá dos valores éticos de que cada um está imbuído. Os brasileiros costumam usar, a título de máxima, a expressão quando um não quer dois não dançam. No caso de uma qualquer transacção financeira, a ganância de uma das partes só será satisfeita se da outra parte existir um sentimento de idêntica natureza.
4. No caso da fraude em apreço, nenhum dos intervenientes fica bem na fotografia. Bernard Madoff, obviamente, por ter sido o perpetrador do acontecimento. Aquilo que se intui é que a sua ganância não foi de índole estritamente financeira, mas sobretudo de índole social e de preservação de uma imagem de sucesso pessoal. Do lado dos intervenientes passivos - reguladores, auditores, investidores -, os dois primeiros pecaram por incapacidade em interpretarem os sinais de fraude que ao longo do tempo vieram à superfície - o que é espantoso, pois se trata de instituições dotadas dos técnicos mais qualificados. Os investidores são culpados em primeira linha por excesso de ganância. Segundo a informação disponível, os fundos de Madoff pagaram ao longo de muitos, muitos anos, independente do ciclo dos mercados, retornos anuais relativamente estáveis entre os 12 e os 15%, superando a tendência de longo prazo da rentabilidade do mercado de acções americano, que não chega ao 12%. Se adicionalmente se tiver em consideração que os retornos pagos apresentavam entre si uma correlação temporal positiva quase perfeita, quando a teoria financeira apresenta evidência de que os retornos de mercado têm correlação negativa - se num ano aumentam, no seguinte tendem a diminuir -, não se pode atribuir a atitude passiva dos investidores dos fundos de Madoff, onde se incluem bancos como o Santander ou fundos de investimento e sociedades gestoras de fortunas, a outra razão que não fosse a ganância. Esta, condicionou-os nas suas decisões financeiras. Um psiquiatra norte-americano, questionado para explicar a atitude de tais investidores, atribui o respectivo comportamento ao que denominou de euforia irracional. A rentabilidade obtida nas suas aplicações era o ópio dessa euforia, toldando-lhes o discernimento para se aperceberem de que alguma coisa estaria mal em fundos que pagavam tais retornos, e que diziam usar estratégias de investimento que nenhum outro fundo conseguia reproduzir em termos de rentabilidades. Ganância da mais elevada pureza. Hoje, muitos desses investidores aparecem a reclamar judicialmente os seus créditos transvestidos de virgens enganadas. O cidadão comum sente-se revoltado, até porque receia que, no limite, tenha de ser ele a pagar as euforias de um conjunto de (gananciosos) investidores.
5. Tudo o mais constante - ou usando a celebre expressão tão do agrado dos economistas, ceteris paribus -, em termos económicos a fraude é inócua. Não implica destruição de riqueza, mas tão só a respectiva redistribuição. Por isso, Bernard Madoff poderia ser considerado uma variante moderna do lendário Robin dos Bosques. O que ele fez, na essência, foi roubar alguns dos seus ricos clientes, distribuindo o produto pelos restantes (igualmente ricos) clientes. Faltou nesta redistribuição um cheirinho de luta de classes, em que os ricos fossem espoliados em favor dos pobres. Tivesse isso acontecido e possivelmente o modo como hoje olharíamos para este caso seria diferente. Teríamos, certamente, um olhar mais complacente para com a actuação de Madoff. Mas não foi assim. O critério da redistribuição foi mais asséptico. Os prejudicados foram os últimos a entrar nos fundos, para benefício dos que entraram primeiro. Tal como nos banquetes, chegar primeiro compensou.
6. Pelo que acabo de referir, o leitor poderá ser levado a concluir que as fraudes em geral, a que se vem discutindo em particular, não são situações a temer dada a ausência de efeitos económicos. Não é correcto. Aliviando o pressuposto redutor que está subjacente ao ceteris paribus, verifica-se que há efeitos sociais e económicos resultantes da fraude. Para o caso em apreço, o principal desses efeitos ocorreu, e vai continuar a produzir impacto, ao nível da confiança dos agentes económicos. Sejam estes investidores activos, sejam meros aforradores, a confiança que depositavam no sistema financeiro, e nas instituições que regulam e supervisionam o respectivo funcionamento, saiu necessariamente enfraquecida. Tendo em consideração que a fidúcia (confiança) é o cimento agregador desse sistema, escusado será discutir as consequências económicas resultantes da existência de fraudes como a perpetrada por Madoff. No período que estamos a viver, com uma crise financeira que está longe de estar resolvida, tais impactos negativos na confiança correspondem a mais um tiro no casco de um porta-aviões que os líderes políticos e financeiros da generalidade das economias mais desenvolvidas se esforçam por manter a flutuar no meio de ondas alterosas. Mesmo quando os efeitos da fraude não extravasam do interior das empresas onde são produzidas, os efeitos negativos sobre a confiança tendem a ocorrer, minando as relações entre as pessoas. A fraude tem, portanto, efeitos sociais e, por essa via, efeitos económicos. É, pois, um mal a combater por todos os meios. No caso Madoff não faltam, infelizmente, áreas - da regulação à auditoria - a necessitar de intervenção imediata profunda, autênticos campos de batalha onde se irá jogar a estabilidade e credibilidade futuras do sistema financeiro e económico mundial.
7. Não consigo traduzir em euros as minhas perdas com a fraude. É um facto que não tenho aplicações directas em tais fundos. A estreiteza do meu rendimento não me permitiria, mesmo que o desejasse, ter acesso ao selecto clube dos investidores que colocavam as suas fortunas nas mãos de Madoff. No entanto, já não estou completamente seguro de que algum do dinheiro que nos últimos anos investi num PPR (Plano Poupança Reforma) não tenha sido para aí canalizado. Independentemente do que a este último nível tenha acontecido, a minha principal perda ocorreu no domínio da confiança no sistema financeiro e nas instituições onde deposito as minhas magras poupanças. Já dei comigo a pensar se não fará mais sentido voltar aos tempos da minha infância, replicando a estratégia de investimento dos cidadãos da aldeia onde então morava, que guardavam o magro pé-de-meia no meio do folhelho de um qualquer colchão lá de casa. Nas minhas cogitações, quando estou mais por baixo e os mais negros pensamentos me avassalam, dou por mim a pensar que talvez nem valha a pena manter um estilo de vida que se baseia na contenção dos gastos, para reter uns euros que me possam ajudar a viver esse futuro incerto em que serei reformado. Quando o Governo aparece a propor-se ajudar tudo e todos, independentemente dos seus comportamentos financeiros actuais e passados, eu mais me convenço que a melhor estratégia de consumo a seguir é a que se costuma traduzir, em linguagem popular, por chapa ganha, chapa batida. No futuro, o Estado, através do Governo, lá estará para me estender a mão generosa e me apoiar financeiramente através de um qualquer subsídio social destinado às vítimas da sociedade de consumo ou de investimentos financeiros arrojados. Nessa altura, engolirei a minha actual descrença num Estado omnipresente que sufoca a sociedade, tomarei um Alka Sezer para ajudar à digestão, e gozarei os proventos recebidos por essa via.
8. Reli a crónica. Estou mesmo em baixo. Os acontecimentos dos últimos tempos, da crise financeira à fraude de Madoff, colocaram a minha confiança no sistema financeiro, no Estado e nos outros, de rastos. Isso nota-se.