Pedro Santos Moura, Visão on line,
Estórias sobre fraudes na saúde de que toda a gente já ouviu falar mas de que ninguém tem a certeza
...
Muitas vezes se ouve falar sobre a excelente qualidade do sistema nacional de saúde (SNS) português. Olhar-se para indicadores de qualidade de saúde de hoje e de à 40 anos atrás mostram a enorme evolução que aconteceu. Devemos, enquanto país, orgulharmo-nos de estarmos no ‘pelotão da frente’ da saúde a nível internacional.
Mas, de uma maneira muito portuguesa, parece-me que começamos, também nesta área, a viver mais do que já foi do que daquilo que pode vir a ser. É típico da nossa cultura que quando chegados a uma certa posição de qualidade e/ou de conforto (pessoal, social, profissional, etc.) a nossa história pare subitamente, passando a entoar rotineiramente e para quem queira ouvir a lenga-lenga sobre os enormes sucessos que tivemos e que nos trouxeram até aqui, tentando assim justificar a nossa permanência nesse posto/posição perante nós e todos os outros (afinal de contas, é uma boa posição). É uma estratégia de cristalização do passado para o futuro, não uma estratégia de futuro. Deixamos de ambicionar e pensar no que poderíamos fazer a partir do ponto onde estamos.
Sou um partidário de um forte SNS público. O setor privado tem os seus pontos fortes, mas considero que o acesso à saúde com qualidade deve ser universal e não discriminatório a partir da capacidade financeira de cada um. E isso está a acontecer cada vez mais (infelizmente tal como na educação e na justiça).
De um ponto de vista sistémico (e simplista), o SNS tem como objetivo garantir a melhor qualidade de vida possível aos cidadãos, utilizando para tal recursos humanos e materiais o mais eficaz e eficientemente possível.
Preocupa-me sentir, pelos sinais que vou recebendo, que o SNS está numa posição de inércia, repleta de enormes hábitos e vícios organizacionais e corporativos, que limitam a possibilidade de, a partir do excelente ponto onde estamos, conseguirmos evoluir ainda mais.
Para concretizar esta minha perspetiva, deixo o relato de um caso que me contaram e que me parece paradigmático de um conjunto de deficiências que, enquanto cidadão, muito gostaria de ver resolvidas. Esta estória foi-me contada por uma pessoa conhecida que trabalha no setor da saúde e que tem um conhecimento interno dos setores público e privado da saúde.
O caso é simples de contar. Num dos maiores hospitais públicos de Lisboa, o serviço de cirurgia pratica, por dia e por sala disponível, 1 cirurgia de uma dada especialidade (não interessa qual para aqui). Segundo a pessoa que me contou a estória, no setor privado, com as mesmas condições, são geralmente praticadas 3 cirurgias da mesma especialidade por sala. Ou seja, um rácio de produtividade de 1 para 3 entre público e privado. Há certamente muitos ‘profissionais’ que conseguiriam, com um discurso exemplarmente articulado, apresentar razões válidas (provavelmente pouco baseadas em factos) para esta discrepância.
A questão preocupante (que gostaria de ver os ‘profissionais’ explicar) é que este rácio tem este valor (1 para 3) durante os dias úteis, no horário normal de trabalho. Segundo a minha fonte, durante os fins de semana a estória é outra. No sector público existe um programa chamado SIGIC, que pretende reduzir as listas de espera de cirurgia, e que é usado sobretudo aos fins de semana. O SIGIC ‘paga à peça’, ou seja, ao contrário do regime remuneratório fixo associado ao trabalho normal, os profissionais de saúde que efetuam cirurgias no âmbito deste programa recebem tanto mais quantas mais cirurgias forem efetuadas, prática comum no setor privado (sobretudo ao nível da classe médica). E misteriosamente, durante os ‘períodos SIGIC’ (geralmente fins de semana), o tal rácio de 1 para 3 cirurgias entre público e privado durante os dias úteis tende, maravilhosamente, a equilibrar-se.
Esta estória choca-me naturalmente. Mas sobretudo levanta-me muitas questões. Os profissionais de saúde trabalham melhor quando têm salário indexado a objetivos? Parece que sim. Os profissionais de saúde no setor público tendem a ‘empurrar’ cirurgias para o SIGIC (ou para o setor privado)? Há diferenças ao nível de recursos materiais e humanos disponíveis entre o setor público e o privado que prejudiquem a produtividade do primeiro? Seria possível ter o mesmo grau de produtividade nos períodos ‘normais’ e nos períodos ‘SIGIC’ dos serviços de cirurgia do setor público? Para além dos profissionais de saúde, o que pensam (e fazem) os serviços de gestão hospitalar, desde os diretores de serviço aos administradores sobre estas discrepâncias? Existem (e se sim quais são) as barreiras organizacionais à melhoria destes indicadores?
Talvez mais importante que todas estas questões (e porque escrevo aqui sob a égide do Observatório de Gestão e Economia da Fraude) existem dados de produtividade destes serviços disponíveis (por exemplo, número de cirurgias por instituição / ’SIGIC’ ou não / especialidade / hora-dia / profissionais da saúde) que permitam comprovar esta estória?
A existirem, gostava muito de ver estes dados para saber se estamos (ou não) perante uma enorme fraude praticada aos olhos (e consciência) de muita gente, que lesa o Estado e sobretudo cidadãos necessitados destes cuidados de saúde.
Mesmo que toda esta estória seja invenção de um amigo aparvalhado, julgo que seria muito útil a existência e divulgação destes dados, pois a transparência é o pior amigo da fraude.