José António Moreira, Jornal i
[O contabilista]
A imagem que a sociedade em geral retém do contabilista não é muito positiva. Um autor, cujo nome não retive, escrevia que o contabilista tem um papel tão secundário que até a arte o discrimina. Dava como exemplo o cinema, onde já se tinham feito filmes tendo por protagonistas todo o tipo de heróis e bandidos, mesmo filmes cuja estrela era um cão, um cavalo ou um outro qualquer animal mais ou menos simpático, mas que a um contabilista nunca havia sido dado o protagonismo de ser a estrela de uma produção.
Lembrei-me desta falta endémica de reconhecimento do contabilista quando o Dr. Ricardo Espírito Santo Salgado (RESS), digníssimo presidente do Banco Espírito Santo (BES) e de mais umas quantas empresas, decidiu produzir um argumento “ficcional” em entrevista ao Jornal de Negócios (22.5.2014) e, pasme-se, atribuir o estrelato ao contabilista.
[A ficção]
Argumento fabuloso, embora simples. Explicado pelo seu autor, puxava para o dramático. O contabilista, tendo ”perdido o pé no meio da crise” (sic), “esquecera-se” de registar no balanço de 2012 da empresa, a Espírito Santo International (ESI), uma dívida no montante de 1,2 mil milhões de euros numa altura em que o dito balanço estava tão frágil que qualquer “responsabilidade” adicional, por mais insignificante que fosse, corria o risco de o transformar em “lixo”. Os administradores (quase duas dezenas) e o revisor de contas (“comissaire aux comptes”), “distraídos”, não se aperceberam que faltava no balanço da empresa uma dívida que representava cerca de um terço (!) da totalidade dos ativos. O tempo foi passando e todos viviam felizes. Os administradores porque com um balanço mais “dourado” conseguiam continuar a contrair endividamento a taxas de juro razoáveis; o contabilista, porque a sua felicidade, certamente, se alimentava da felicidade que via na face dos primeiros. Mas o momento da desgraça chegou [não se ouve mas antecipa-se uma música de fundo soturna]. O Banco de Portugal mandou fazer uma auditoria independente às contas da ESI e o “esquecimento” foi facilmente detectado. Segundo RESS, autor e narrador da “ficção”, o contabilista assumiu o seu “erro” e demitiu-se [não se vê, mas intui-se que parte para o desterro, amargurado]. Os administradores, confrontados com a situação, decidiram expiar a culpa pela “omissão”. O presidente [RESS], à moda antiga, foi o capitão que enfrentou a imprensa, sequiosa de detalhes e em busca de um escândalo. Calmo, colocou os holofotes no desempenho do contabilista, “humildemente” secundarizando a actuação da administração [tão convincente foi que quase se conseguia escutar o roçagar das suas asinhas de anjos umas contra as outras]. A audiência fica prostrada pela actuação [os acordes pungentes da banda sonora que se intuem em fundo ajudando ao efeito].
[O esquecimento]
Os jornalistas que o entrevistaram, por sua vez, ficaram emocionados com a trama, esmagados pelo desempenho do actor. Nem se lembraram de perguntar a RESS como foi possível “esquecerem” o registo de uma dívida (responsabilidade) daquele montante, e se não era coincidência a mais que esse “esquecimento” tivesse coincidido temporalmente com a extrema fragilidade do balanço da ESI.
“Detalhes!”, dir-se-á. É verdade, detalhes, mas que retiram emoção à história.
[O verdadeiro drama]
Como leitor, a história “divertiu-me”. Teve até o seu quê de formativo, ilustrando em concreto o que significa ter “boa imprensa”, e mostrando que mesmo um sisudo banqueiro pode ser um actor de primeira água, capaz de um desempenho magistral a partir de uma história “sem pés nem cabeça”.
Como depositante e aforrador, aterrorizou-me. Pensar que o sistema financeiro acolhe no seu seio administradores que não conhecem o montante do endividamento das empresas que “administram”, e “contabilistas” que podem perder “o pé no meio da crise” e esquecerem-se de registar as dívidas contraídas … causa calafrios. Este é o verdadeiro drama.