José António Moreira, Visão on line,

O miúdo recostado na cadeira, olhos fechados, boca aberta, incutia preocupação ao pai

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[O cenário: um consultório em todos claros, muito iluminado]

 O miúdo recostado na cadeira, olhos fechados, boca aberta, incutia preocupação ao pai que, de pé, a um canto, seguia atento o desenrolar da consulta. A duração do exame levado a efeito pelo odontologista fazia crescer os seus receios. Que eram fundados.

– O miúdo já cá devia ter vindo há muito tempo. O protelamento agravou o problema. É preciso atuar com rapidez.

– Doutor, o que é que isso significa?

– Os dentes estão tortos, e o maxilar a ressentir-se da má oclusão dentária. A prazo as consequências serão graves e levarão a uma disfunção têmporo-mandibular. E não se trata apenas de um problema estético …

– Quanto custaria o tratamento …, disse em voz sumida.

– Vejamos … o aparelho a aplicar nos dentes, a correção cirúrgica do canino, as consultas de acompanhamento … rondará os 4000 euros.

Ouvir tal número foi como um murro no estômago. Sentiu a saliva desaparecer da boca, um suor frio escorrer pelas costas.

– Avançamos para o tratamento?

– Não sei doutor, respondeu a custo. – A vida está difícil … não é fácil acomodar essa despesa no orçamento …

– O que faz profissionalmente?

– Sou funcionário público.

– Concretamente, em que trabalha?

– Sou professor …

– Ah! Estou a ver. A comparticipação do subsistema é reduzida neste tipo de tratamento. Em termos de dedução no IRS só consegue dez por cento. Tenho uma proposta a fazer-lhe. Faço-lhe 25% de desconto no tratamento, mas sem recibo. Que me diz?

Pensou um segundo. 1000 euros era uma soma importante no momento. Do modo que as coisas estavam esse montante de desconto era imprescindível para poder fazer o tratamento ao miúdo.

– De acordo doutor, se lhe puder pagar em três prestações, à medida que o tratamento for decorrendo.

– Não há problema. Estamos combinados. Só aceito pagamento em “cash”, certo?

– Correto.

[O comentário]

A situação descrita é ficcionada. O tema não. Este tipo de “acordos” tem vindo a crescer. A redução das deduções à coleta, nomeadamente para as despesas de saúde, em simultâneo com o “brutal” aumento de impostos, levou a que, sem necessidade de grandes contas, ambas as partes, numa transação como a descrita, ganhem financeiramente, à custa do Estado, se optarem por não a registar.

O atual sufoco financeiro em que muitas famílias vivem é uma atenuante na condenação social deste tipo de fraude fiscal … que não encontra antídoto na “fatura da sorte”.