José António Moreira, Jornal i
A vida é feita de rotinas, a que pequenas quebras dão colorido. Quebras como ir jantar num sábado à noite a um restaurante que esteve muito em voga há quarenta anos, procurando reviver as sensações fortes e despreocupadas dos tempos de juventude. Quebras que nem sempre se traduzem em boas escolhas. Foi o caso. A qualidade da comida e o ambiente intelectual de então tinham desaparecido completamente na voragem do tempo, ficando apenas as paredes graníticas, parcialmente revestidas de azulejos azuis. Até o nome perdeu qualquer afinidade com a colorida ave que o empresta ao estabelecimento – papagaio.
No decurso da refeição o empregado procurou inteirar-se, num gesto que pareceu desprovido de qualquer preocupação intrínseca com o assunto, se tudo estava bem. O descontentamento dos clientes com a fraca qualidade da refeição foi-lhe comunicado. Não disse nada, nem sequer esboçou uma desculpa que pudesse, eventualmente, deixá-los na dúvida de aquele ser um dia mau. Baixou a cabeça, virou as costas e voltou a atenção para os restantes clientes que lhe enchiam as mesas.
Conferiu-se a conta, pagou-se. No dia seguinte a surpresa. A factura, onde havia sido aposto o número de contribuinte e substituído o detalhe dos produtos consumidos pela menção a “duas refeições”, estava passada por um montante arredondado quase cinquenta por cento superior ao valor pago. Ironia. Se a qualidade da comida não conseguira reavivar memórias de outros tempos, consegui-o este inesperado desacerto de números. Trouxe ao pensamento vivências de uma época não muito distante, em que pedir factura num restaurante era ter de ouvir o empregado perguntar qual o montante que se queria ver inscrito no documento.
Muito se tem dito e escrito nos últimos tempos sobre a “lotaria contra a evasão”, que sorteará semanalmente a badalada viatura topo de gama entre os “coletores” de facturas. A ideia subjacente à generalidade das opiniões de cronistas e comentadores é a de que se trata de mais um “retrocesso civilizacional”, pois propõe a atribuição de um prémio a quem se limita a cumprir um dever cívico. É verdade. Não devia existir. Mas também não deviam existir cidadãos que não cumprem os seus deveres cívicos, como pedir justificativo documental de uma transacção. Daí que não repugne pensar que os cidadãos cumpridores possam ter algum tipo de benefício diferenciador, já que não se afigura possível penalizar os infractores.
Porém, “não lembra ao Diabo” pensar num prémio como o referido, numa altura em que as famílias se continuam a debater com o excessivo peso das dívidas que em tempos contraíram. A ter de existir, não poderia o dito sorteio, por exemplo, atribuir um prémio monetário que fosse aplicado na redução dessas dívidas ou, caso elas não existissem, fosse descontado aos impostos a pagar nos anos seguintes pelo premiado? “Poder, podia! Mas não era a mesma coisa”, para usar a expressão de um conhecido “spot” publicitário. Ao optar pelo carro, quem desenhou a “lotaria” sabia o tipo de prémio que tem maior probabilidade de despertar cobiça, por permitir ao premiado afrontar e suplantar o brilhante bólide do vizinho. Enfim …
Voltemos à factura. Por via do seu valor empolado beneficiar-se-á indevidamente de um crédito de imposto dedutível no IRS de cerca de trinta cêntimos, que apenas não causará problemas de consciência porque os cofres públicos irão receber mais dois euros e trinta cêntimos do que deviam. Um final feliz, em que (quase) todos ganham.