Carlos Pimenta, Jornal i

Para os "donos do mundo", apostados na continuidade da financeirização da economia, mais vale a sua continuação que a transparência e o bem-estar social

1. “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mateus 6:24). Ninguém pode defender interesses diferentes que entram em antagonismo sem abdicar, total ou parcialmente, de um deles. Eis a expressão bíblica do conflito de interesses que aumenta a probabilidade de actos fraudulentos, políticos e económicos.

2. Aqui e além alguns conflitos de interesse são desmascarados. É o caso da Arthur Andersen quando do encerramento fraudulento da Enron (EUA, 2002): sendo simultaneamente consultora e a auditora desta, as suas auditorias nunca revelaram as graves fraudes cometidas. Foi à falência e a lei passou a impedir o desempenho dessas duas funções pela mesma empresa.

Mas, na maior parte dos casos, os conflitos existem, perduram, consolidam-se e geram fraude, compadrio e corrupção.

As empresas de rating são um exemplo dessa perenidade. Elas foram uma das pedras angulares da proliferação da titularização dos créditos, que desembocou na crise actual. Pagos para classificar quem lhes pagava, possuidores de informação privilegiada, influenciando a montante as cotações dos títulos e aproveitando a jusante as alterações de cotação. Para “informar”, jogou com responsabilidades divergentes e lucros convergentes, com desinformação. Sem qualquer regulação ou fiscalização.

Apesar disso continuam hoje a ser uma referência. Para os "donos do mundo", apostados na continuidade da financeirização da economia, mais vale a sua continuação que a transparência, a regulação, e o bem-estar social.

3. Também o BPN está prenhe de conflitos de interesse: entre responsabilidades políticas e interesses privados, na constituição e funcionamento do banco; entre os discursos eleitorais e os lucros de associação criminosa; entre o imperativo de políticas públicas adequadas e o apoio à camarilha amiga; entre as negociatas e crimes e a representação da Nação a que estavam vinculados.

Há conflito de interesses quando deputados aprovam leis que se aplicam a seus clientes, familiares e amigos. Quando organismos fiscalizadores são financiados pelos que devem ser controlados. Quando a OCDE é a principal agência reguladora de cooperação e combate à evasão fiscal e muitos dos paraísos fiscais plenos de secretismo são dos países que a constituem.

Enfim, há um conflito de interesses quando a esfera política está subordinada à actividade económica, não se cumprindo o mínimo que lhe seria exigível: "é fundamental assegurar-se a efectiva submissão do poder económico ao poder político democrático" (primeiro programa do PPD).

4. Também na recente privatização dos CTT os conflitos de interesse despontaram: quem avaliou o preço das acções a praticar na OPV foram instituições financeiras que iriam utilizar esses títulos em futuro proveito próprio. Uma privatização polémica, um encaixe financeiro aquém do possível, quiçá um diferencial a ser pago por nós.

Um processo que envolve ainda o conflito de interesse entre um governo livremente prisioneiro do capital financeiro e a representação do país a que está constitucionalmente vinculado.

5. A "sociedade de mercado" é um opaco mundo de conflitos de interesse.

É inimaginável exterminá-los, mas, simultaneamente, é mortal nada se fazer contra a sua existência. É um imperativo categórico percorrermos dois caminhos: (1) romper a promiscuidade entre poder político e poder económico e afirmar o primado da democracia; (2) contribuirmos para a difusão da honestidade e da ética.