Mariana Costa, Visão on line,

Se a coercividade é ou não é a característica individualizadora da norma jurídica é de pouca importância, quando falham as condições práticas para a imposição da norma
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A história desde sempre deu provas que não há lei que resista à resistência da população. Veja-se, em Portugal, o recente exemplo paradigmático da alteração à Lei da interrupção voluntária de gravidez.

As Leis, os Decretos-Lei, Portarias e até as famosas e tão odiadas Circulares das Finanças não vivem num vácuo jurídico todo-poderoso, imunes à adesão dos seus destinatários e às limitações dos seus aplicadores. Se a coercividade é ou não é a característica individualizadora da norma jurídica é de pouca importância, quando falham as condições práticas para a imposição da norma e para o sancionamento do seu desrespeito.

Tudo isto a propósito de sorteios de automóveis…

Numa entrevista de Aldous Huxley, onde ele comparava, num exercício fantasioso, a probabilidade de ocorrência do seu “Admirável Mundo Novo” com a probabilidade de afirmação da sociedade retratada no livro “1984”, de George Orwell, o autor referia que esta última jamais teria hipótese de subsistir, porque o controlo pela repressão gera revoltas e subversões.

E não é que é?

Enquanto sociedade, percecionamos a Economia Subterrânea (entendida como a produção de bens ou serviços legais, deliberadamente ocultada das autoridades públicas para evitar pagamento de taxas ou impostos, ou o cumprimento de outras obrigações legais) como um fenómeno negativo, merecedor de censura jurídica e social.

Enquanto indivíduos, porém, não podemos deixar de ser sensíveis à história da Dona Manuela, que corta cabelos há mais de vinte anos no cabeleireiro da esquina e que não sabe por quanto tempo conseguirá manter as portas abertas, “se isto continuar assim”. Claro que o facto de ser “vinte euros em dinheiro” e “vinte e cinco se for multibanco” também ajuda a esta faceta empática com as dificuldades alheias…

O nível de perceção social e de condenação moral das atividades enquadráveis na noção de Economia Subterrânea parece variar em função da atividade concreta que está em causa e em função da identidade do sujeito ou do contexto económico-social envolvente (não parece igual o grau de censura social pela não declaração de rendimentos de uma grande sociedade comercial, ou pela não emissão de fatura sobre rendimentos obtidos com biscates, por necessidade de subsistência).

A análise desta perceção e valoração moral sociais das condutas integráveis na Economia Subterrânea deve constituir um contributo importante para a definição da política económica e financeira oficial de combate e prevenção da Economia Não-Registada.

Ou então sorteiam-se automóveis…

Esta medida da administração fiscal porá, em certa medida, à prova o argumento dos que defendem que a falta de colaboração da população no combate à fuga fiscal se deve a razões de convicção e censura à carga fiscal excessiva cobrada no nosso país. Se for só comodismo, um automóvel é incentivo suficiente para se decorar 9 dígitos extra e gastar 30 segundos a mais em cada compra e serviço.

Ao comodismo do “não vale a pena” e à vergonha do “não é preciso” substitui-se o sorriso tímido do “sim, por favor. E se ganhar o automóvel, deixo-o dar umas voltinhas ao fim-de-semana”.