António João Maia, Visão on line,

Julgo que em relação à corrupção em Portugal a perceção da sociedade aponta para uma certa ideia excessiva, distorcida
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Há poucos dias, a 9 de dezembro, assinalou-se o dia internacional contra a corrupção, cuja data decorre da assinatura, em 2003, da Convenção da ONU contra a corrupção (1)

Poucos dias antes, a Transparência Internacional (2) tinha divulgado o índice de percepção da corrupção de 177 países, verificando-se, no caso de Portugal, uma estabilização relativamente ao ano anterior, na 33ª posição, com um valor absoluto de 62, contra o de 63 então registado, numa escala em que 0 corresponde a uma percepção de um país altamente corrupto e 100 a uma percepção de um país nada corrupto.

Apresentamos, a propósito, para que se tenha uma noção mais conjuntural da questão, os valores absolutos e as posições relativas registadas por Portugal neste índice ao longo dos últimos dez anos. Os valores mostram que, apesar das oscilações no posicionamento relativo no conjunto dos países avaliados (2º linha), pode aceitar-se que os índices absolutos (1º linha) não têm apresentado oscilações que possam considerar-se muito díspares, o que significará que, apesar de tudo, o índice de perceção da corrupção não tem variado assim tanto como por vezes se possa pensar ou se quer fazer crer.

 

Índices de perceção de corrupção registados para Portugal segundo a Transparency International

ANO

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

Valor do índice registado

63

65

66

65

61

58

60

61

63

62

Posição relativa no conjunto dos países avaliados

27

26

26

28

32

35

32

32

33

33

Fonte: Transparency International - http://www.transparency.org/research/cpi/overview

 

Todavia, os elementos traduzidos por este índice são sem dúvida importantes, sobretudo por não existirem ainda mecanismos capazes de aferir, de uma forma exata, a dimensão real do fenómeno. O índice tem desde logo a vantagem de permitir relacionar os países entre si, numa escala única, apesar de – insiste-se – se tratar de uma escala de percepção. É evidente – não podemos nunca perder de vista esta noção – que ele há-de representar alguma relação com a realidade objetiva do problema. Porém traduz uma percepção, nada mais ou pouco mais do que isso…

Pela sua natureza o problema da corrupção tende a estar socialmente oculto, um pouco à semelhança como o que sucede com outras questões de natureza similar, como sejam por exemplo a violência doméstica dos adultos, uns sobre os outros, sobre as crianças ou sobre os idosos, ou ainda em relação a hábitos de consumo de álcool, ou de drogas, etc. Por isso este tipo de problemas tendem a ser mais ou menos percecionados muito em função da atenção mediática que lhes seja conferida.

No caso da corrupção, é objectivamente verdadeiro que tem sido um problema muito mediatizado entre nós, sobretudo nos últimos anos. Em si mesma, esta mediatização é positiva, pois, como se disse, é ela que os traz para o discurso público, para a agenda social e política, permitindo assim a criação de espaços públicos de reflexão, de análise e de tratamento com outros olhos, com outros cuidados, com outra atenção... Só depois de se tornarem por assim dizer problemas do domínio público, os Estados tendem a procurar estratégias e mecanismos adequados para os resolver ou, pelo menos, para os controlar e prevenir.

Todavia o mediatismo pode ter outros efeitos, como sejam por exemplo - como parece ser manifestamente o caso da corrupção em Portugal – o de produzir uma sobre representação do problema.

Os mais velhos, sobretudo os que sejam de Lisboa, como é o meu caso, recordar-se-ão seguramente de uma sala de espelhos, que existia na velha feira popular, e que, por não serem perfeitamente planos e conterem determinadas convexidades e concavidades, reproduziam imagens estranhas, por vezes grotescas, daqueles que diante deles passavam. O que as pessoas viam e as fazia rir, nalguns casos a bom gargalhar, era as suas imagens distorcidas, ora esticadas, ora encolhidas, ora alargadas, ora estreitas, mas sempre – sempre! – distorcidas e nunca como efetivamente reconheciam ser o seu corpo…

Ora julgo que em relação à corrupção em Portugal a perceção da sociedade aponta para uma certa ideia excessiva, distorcida, que assume – à semelhança do reflexo nos espelhos – que tudo e todos são corruptos. No limite, que todos somos corruptos…

Por um lado, o discurso mediático é em si mesmo construído segundo determinados critérios que tendem a diferenciar o grau de publicidade de determinadas situações suspeitas relativamente a outras, focando muito particularmente os casos que envolvem nomes de destacadas figuras públicas (3). Por outro lado, verificamos que por vezes esse discurso mediático acaba por ser, aqui e ali, reforçado por afirmações, as mais das vezes especulativas – na medida em que tendem a não ser acompanhadas por dados objetivos que as suportem ou que lhes confiram veracidade, no sentido de serem algo mais do que mera especulação – de opinion makers, que, como julgo seria sua função natural, em vez de apresentarem propostas mais concretas para procurar vias para solucionar os problemas invocados, preferem reforçar negativamente essa perceção, tornando-a mais convincente e a tender para essa ideia já expressa de que na realidade tudo e todos são corruptos…

Como digo, entendo que a perceção existente não corresponda no seu todo à verdade do problema e, pior do que isso (como também referi nos referidos artigos), que ela pode em si mesma ser perigosa, uma vez que, de entre outros efeitos, pode, no limite, induzir a ideia de um certo caos, de um salve-se quem puder, onde tudo é aceitável e admissível…

Mas, questionar-se-á, temos ou não um problema de corrupção? Claro que temos! – importa responder sem dúvida. Porém devemos também acrescentar que todos os países, à sua medida e em função do seu próprio contexto social, económico e cultural, têm também os seus problemas de corrupção. Todos, sem exceção, têm os seus próprios problemas de corrupção!

Nenhuma sociedade está, nem virá algum dia a estar – pensar e sobretudo acreditar no contrário é pura utopia – a coberto do problema.

A corrupção é um problema inerente ao viver em sociedade. Porém, daí a dizermos e, pior, a acreditarmos que estamos e vivemos num país de corruptos parece errado e sobretudo injusto para com os serviços públicos e a grande maioria dos funcionários que neles exercem funções, que necessariamente acabam por ser vistos no mesmo enquadramento.

A ser verdadeira a perceção existente, então teríamos uma realidade que nos mostraria que sempre que cada um de nós tivesse, por uma qualquer questão, de recorrer aos serviços públicos – e como se imagina, ocorrem diariamente milhares de contactos entre os cidadãos e os serviços públicos – iria muito provavelmente encontrar-se com um funcionário que acabaria por denotar sinais mais ou menos evidentes de querer um pagamento indevido para realizar adequadamente a sua função, ou seja corresponder à nossa pretensão… Ora estou absolutamente certo, pela minha própria experiência de cidadão, que como qualquer outro – como o leitor, por exemplo – se desloca aos serviços públicos, de que isto não é verdade. Como digo, a grande maioria dos funcionários dos serviços públicos são pessoas da máxima seriedade, que respeita por educação e convicção os valores da ética e da moral e que por isso será incapaz sequer de equacionar, ainda que a título hipotético, qualquer solução que passe por práticas menos claras ou de corrupção!

Julgo pois que o problema existe. E mais, que tem efeitos nefastos a muitos níveis (4). Por isso têm sido criados mecanismos legais e institucionais para procurar soluções para lhe fazer face. Que estes mecanismos possam ser melhorados de modo a tornar-se mais eficazes na sua acção, é também verdade, pois é da sua própria natureza a possibilidade de serem sempre melhorados. Além do mais, acreditamos que haja ainda muito caminho a percorrer por esta via. Por isso todos os contributos positivos para a procura de passos consistentes nesta caminhada não podem deixar de ser considerados, nesta luta que é de todos e cujos benefícios são inquestionavelmente para todos…

Julgamos, para finalizar, que problema da corrupção em Portugal possa ser traduzido por um “boneco” simples, como o que se sugere, no qual o circulo mais alargado representa a dimensão do problema segundo a percepção existente (uma sobre representação da corrupção real), o circulo central representará a dimensão efetiva do problema, que, como se disse, não é possível aferir de forma exata, mas que denota ser inferior à dimensão percecionada, e o circulo menor representa uma dimensão, chamemos-lhe ideal, que será aquela que se pretende alcançar com a maior eficácia dos mecanismos e estratégias de repressão prevenção, quer dos que já existem, quer dos que lhes venham a ser adicionados.

VisaoE257

 

NOTAS:

(1) https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf.

(2) www.transparency.org

(3) Ver a este propósito as crónicas

(4) Ver Corrupção, crime sem vítima…, publicado em Dezembro de 2012 e acessível em http://obegef.pt/wordpress/wp-content/uploads/2012/12/VisaoE203.pdf