Paulo Vasconcelos, Visão on line,
Faz sentido ordenar na mesma escala uma escola em centro urbano bem desenvolvido com outra no interior rural por desenvolver?
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"Todas as nossas escolas são escolas de guerra, pelo recrutamento, porque só queremos os mais aptos ou aqueles que julgamos mais aptos, pela disciplina do curso e do comportamento, e pelo nosso objectivo de, no final dos estudos, os repartirmos por armas.". Em sintonia com este excerto de Agostinho da Silva na sua obra Espiral, fica claro que na sociedade portuguesa moderna a entrada para certas escolas tem vindo a ser uma luta fratricida, sendo que em tempo de guerra nem sempre há ética no comportamento guerreiro; por outro lado, e em dessintonia com o filósofo atendendo à crise socioeconómica, não há hoje armas para repartir à saída da escola – não há trabalho especializado para especialista.
É nesta trapalhada que a contemporaneidade nos confronta com a necessidade de quantificar tudo e de tudo ordenar. Os rankings das escolas pretendem comparar fortes, distinguir fortes de fracos. Talvez, permitir tirar ilações para melhoria. Comparar não é errado, antes pelo contrário, todos queremos o melhor para a educação; uma forma de as instituições melhorarem é também pelo seu posicionamento relativo em relação às demais. Tudo isto é verdade apenas e só se se comparar o comparável.
Faz sentido ordenar na mesma escala uma escola em centro urbano bem desenvolvido com outra no interior rural por desenvolver? Escolas com corpo docente estável e motivado com escolas carentes de professores que abracem um projeto educativo e que sejam abraçados pela instituição e sociedade envolvente? Escolas com infraestruturas com outras quase sem condições de funcionamento? Ora, todos aceitamos que a existir uma ordenação ela deveria levar em linha de conta certos condicionalismos, formando, digamos, uma ordenação por patamares ou categorias. Quando analisamos o ranking das escolas vemos um rol de escolas, indiferenciadas em relação a muitos destes (e outros) aspetos que teriam que ser diferenciadores e condicionadores. Mesmo que alguns fatores de diferenciação tenham vindo a ser incluídos, a notícia não os releva. Não é uma crítica à comunicação social. O processo é que é complexo, e não pode ocupar os 5 minutos de abertura de um telejornal. Exige um programa que informe e contraponha. No ranking atual o que significa ficar em primeiro lugar? É a melhor escola? O que é ser a melhor escola?
Ora, quem faz verdadeiramente a escola, a melhor escola, são os estudantes pela capacidade que têm, pelo que trazem de casa, pelo seu conhecimento do mundo e pelas suas experiências de vida, pelo acesso que têm à informação também, e sobretudo, fora da escola. Com o forçar da ideia que todos devem ter igualdade de oportunidades em escolher a escola em que querem estudar, criou-se a falsa ideia de que o “modelo” atual proporciona aos nossos filhos a melhor oferta possível. Todos percebem que no limite haverá uma escola que é melhor que todas as outras e que portanto, não é possível satisfazer todos os interessados. Mas quem tem acesso à informação? Quem pode “pagar” a entrada na melhor escola? A resposta é: uma parte pequena da sociedade, no fundo um conjunto de eleitos. Afinal quando pensávamos que tínhamos uma escola democrática, o que temos é uma escola verdadeiramente elitista. A escola que antes era para alguns, porque os outros não tinham possibilidades intelectuais e/ou económicas para a frequentarem, permanece agora para poucos, porque há muitas escolas mas em muitas delas não se consegue ensinar/aprender. Mesmo em muitas das escolas de excelência, porque o contingente de progressão é limitado a um conjunto de notas muito elevadas, há a inversão completa do ónus: o importante não é formar, ajudar a explorar e enriquecer mas antes o preparar para ultrapassar determinadas provas e obstáculos específicos otimizando técnicas de resposta. Ensina-se a responder, não a perguntar. Aprende-se a contornar não a dominar.
Ora, atendendo a que
- A escola não é mais um espaço de formação, é um negócio.
Esta constatação está excelentemente retratada por Joaquim Almeida Santos (2013) quando refere “Transformada em empresa, a escola vende uma mercadoria a que uns chamam educação e outros simplesmente instrução. Estabelece-se, de forma crescente, uma relação comercial e jurídica que envolve, como em qualquer negócio, duas partes, um vendedor (que é a escola) e um comprador, um cliente (que é, diretamente, o aluno e, de forma entreposta, a família desse aluno). No meio há um “bem”. Intangível mas que se quer forçosamente que tenha características de uma mercadoria tangível, palpável, observável e facilmente mensurável em termos de qualidade.”
Mas não é só a instituição escola que surge como agente económico, também livros e material de apoio são mercadorias que fazem movimentar muito dinheiro. Todos tivemos de comprar para os nossos filhos tintas, pinceis e canetas especiais de pequeno traço mas de grande custo. Muito deste material nem chega a ser usado. Lembro-me também de uma coleção de livros de educação física que continuam embrulhados. Entregar para que outros os usem é louvável e por vezes ajuda a resolver o problema de famílias mais carenciadas que querem proporcionar boa educação aos filhos. As editoras produzem manuais com papel caro, folhas híper coloridas, fazendo-os acompanhar de cadernos de atividades e E-manuais - que vendem como blocos pedagógicos. As escolas optam por certos livros e têm de os manter, embora por um período curto. Mas claro, na senda da reforma da reforma, eis senão que os sucessivos ministérios vão alterando os curricula; mesmo que pouco, faz com que o livro do irmão mais velho ou do primo não possam ser reutilizados. Em países mais evoluídos, os livros são entregues pelas escolas aos estudantes. Terminado o ano letivo, estes são obrigados a devolvê-los em condições de reutilização para o próximo ano por outros estudantes. Só há aquisição, a posteriori, caso o estudante os tenha inutilizado. Aqui há muitos anos falava-se na dificuldade de sobrevivência das editoras, agora o sucesso de vendas tem levado a fusões, aquisições, à formação de grandes e poderosos grupos editoriais.
E a que
- O sucesso escolar é um decreto e não o fruto do esforço.
O sucesso escolar foi decretado. Sim, desencadeado pelo despacho 98-A/92, aquele em que a palavra “reprovado” não consta; apenas a de “não aprovado” no final de um ciclo de estudos … como pode a escola produzir resultados e consequências do processo educativo se é forçada a transitar impreparados? Falar de modelos de recuperação, sim faz sentido. Mas a não exigência faz da escola um recreio de brincadeiras e de vaidades; não passa de um espelho das frustrações que uns trazem de casa e da frustração daqueles que querem aprender mas não podem porque o nível é gritantemente baixo, a qualidade subestimada e o ritmo perigosamente brando.
As instituições de ensino estão transformadas em máquinas de fornecimento de diplomas e não em espaços de provimento de qualificações. Quem perde então? Perde a sociedade e perdem as famílias e os estudantes que, ébrios pelo sucesso fácil, alimentados pelo sistema, se deixam ludibriar. Investem a sociedade e as famílias, tempo e dinheiro num processo que converge para a falência. Agora perante a crise financeira, tudo vem ao de cima.
O que seria importante evidenciar seria que
- Não importa se público ou privado: o sistema educativo deve potenciar-se com ambos
Quando o estado entrega cheques dentista a cidadãos para se tratarem no privado, procede de forma inteligente aproveitando potencial instalado, dado que o serviço nacional de saúde não dispõe de uma rede de médicos dentistas. Público e privado convergem num sistema de saúde nacional.
Mas o que se pretende quando se patrocina escolas privadas, quando se aumenta o número de estudantes por turma no público, quando se avalia professores após a estes ter sido reconhecida competência para exercer a profissão? O que se espera de um estado que tem uma rede escola vasta, que ainda recentemente investiu, imenso, na modernização dessa rede? O que esperar da entrega de escolas públicas à gestão privada? Receio responder, de tão evidente que é a resposta. Não seria de o público e o privado, também no ensino, convergirem num sistema de educação nacional?
Infere-se pois que
- A escola é cada vez menos um espaço de oportunidade
Tal como na guerra o vencedor não deve humilhar nunca o vencido, também um sistema que se quer educativo deve premiar o sucesso e apontar alterações para inverter o insucesso. Nas palavras de François Dubet (2004) “A igualdade de oportunidades pode ser de grande crueldade para os perdedores de uma competição escolar encarregada de distinguir os indivíduos segundo o seu mérito. Uma escola justa não pode limitar-se a selecionar os que têm mais mérito; deve preocupar-se também com a sorte dos vencidos”. Se assim não for, tudo é uma grande fraude encapsulada debaixo de (falso) sucesso escolar.
Referências
Joaquim Almeida Santos, Estudar, é preciso? … Percursos e práticas de construção do sucesso escolar no quotidiano de jovens na escola pública, Edições Húmus, Lda., 2013
François Dubet, L'école des chances : Qu'est-ce qu'une école juste?, Seuil, 2004
Rui Santiago, Maria Fernanda Correia, Orlanda Tavares, Carlos Pimenta, Um olhar sobre os rankings, CIPES, 2004
http://www.publico.pt/ranking-das-escolas