Carlos Pimenta, Visão on line,

A semana passada foi marcada pela investida da EDP nos bairros do Lagarteiro e de Contumil no Porto

A semana passada foi marcada − entre outros acontecimentos de triste memória como a aprovação do OGE para 2014 − pela investida da EDP nos bairros do Lagarteiro e de Contumil no Porto. Os técnicos da EDP, protegidos pela PSP, procederam ao corte da electricidade de muitos dos consumidores, privando-os desse bem essencial à vida quotidiana.

O Jornal de Notícias (02/11/2013) informa que nos cortes previstos na cidade do Porto há também moradias da classe média-alta e dá destaque a alguns casos de fraude dos consumidores ou de dívidas que se arrastavam há muitos anos. Mas a acção começou por bairros sociais de famílias de parcos rendimentos e muitas seriam certamente as razões para a falta de pagamento.

Sejamos claros. Se há fraude dos consumidores elas são inaceitáveis. Contudo, mesmo que o objectivo da empresa fosse "efectuar o corte de ligações fraudulentas", mantem-se inadequado o processo. Revela desproporcionalidade e fragilidade dos clientes perante a empresa. Talvez tivesse sido bom reflectirem sobre uma outra frase contida no comunicado da EDP: "tendência de crescimento de fraudes" e questionarem-se porquê.

A fraude, esquecida para uns, exigindo longos processos que a pouco conduzem para outros, é hoje a palavra-chave utilizada pelo poder, político e económico, para falar do agravamento das condições de vida da generalidade dos portugueses, da brutal e abrupta ruptura entre o que legitimamente se projectou e o que se pode hoje concretizar. Há pouco tempo o Estado falava em fraude dos utilizadores de transportes públicos para justificar mais fiscalização − gerando uma dinâmica pouco virtuosa − agora a EDP passa aos actos.

2. É manifesta a desproporcionalidade das acções, tomando como referência exclusiva várias e lamentáveis situações relacionadas com a EDP.

Se não paga, corte-se! Se se aceita pagar 3,1 milhões de euros em remunerações e prémios ao presidente executivo da EDP ("de acordo com o relatório da eléctrica, o montante global bruto das remunerações pagas aos membros dos órgãos de administração e fiscalização da EDP, no exercício de 2012, rondou os 18 milhões de euros" - Público 6/4/2013), como aconteceu com a aprovação do Relato Financeiro no início deste ano, na sequência de uma prática corriqueira, considera-se que é a justa remuneração, é o reconhecimento dos accionistas. Se se "rouba" não pagando leva-se a Polícia, instituição do Estado; se se "rouba" todos os consumidores − porque são eles que pagam os prémios aos administradores − o Estado abstém-se na votação.

Se não se paga, corta-se! Se a EDP faz os consumidores pagarem muito mais do que as famílias compraram, a electricidade, tudo está bem na "república das bananas" e as famílias são obrigadas a aceitar. O que compramos é a electricidade, mas o que mais pagamos na conta de electricidade é a "tarifa de acesso à rede". A electricidade custa 43% da factura que pagamos e, do restante, 26% para a "utilização das redes" e 31% de "custos de interesse económico geral".

Quando a EDP se engana nas contas ou comete qualquer irregularidade não é ela que vem a nossa casa resolver o problema que criaram. Somos nós que, com prejuízo de horas de trabalho, temos que nos deslocarmos a um posto de atendimento para nos defrontarmos com um mau serviço. Será que no futuro podemos pedir o apoio da Polícia para obrigar a EDP a corrigir o seu "erro" e a indemnizar celeremente?

3. Nestas situações recordamo-nos amiudadamente da carta de Eça de Queiroz à companhia das águas:

"Se eu não pagar, faz isto: corta‐me a canalização.
Quando V. Exa. não fornecer, o que hei‐de fazer, Exmo. Senhor? É evidente que para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que V. Exa. me cortaria a canalização, de cortar alguma coisa a V. Exa."

Mas hoje o problema é mais grave, não basta “cortar alguma coisa a V. Exª”. É preciso cortar alguma coisa ao funcionamento da sociedade em que vivemos, decepar na globalização o aumento das desigualdades na distribuição do rendimento e o desrespeito pelo Homem.

4. A delinquência deve ser combatida, venha dos pobres ou dos ricos. A delinquência das elites é o principal problema criminal actual, afectando de uma forma devastadora as condições de vida de muitos milhões de cidadãos. A delinquência dos pobres, embora afecte habitualmente poucos, é a mais severamente combatida.