Rute Serra, Expresso online
A lição é, portanto, inequívoca: não basta confiar na robustez formal das instituições; é preciso reforçar os seus mecanismos internos de resiliência. E isso implica normas claras, fiscalização independente, cultura organizacional de integridade e uma vigilância permanente por parte da sociedade civil
Habituámo-nos, em especial nos últimos anos, a assistir durante o mês de dezembro à proliferação desenfreada de iniciativas públicas alinhadas com a comemoração do Dia Internacional de Combate à Corrupção – 9 de dezembro. Este ano, o exercício refletivo que este mês impele surge envolto numa densidade particular. A Europa encontra-se num ciclo de reconfiguração normativa e institucional: desde 2023 que a Comissão Europeia elabora uma diretiva anticorrupção destinada a uniformizar, pela primeira vez, o entendimento jurídico da corrupção no espaço comunitário — um projeto que apenas recentemente obteve um acordo político preliminar entre o Parlamento, o Conselho e a própria Comissão, e que aguarda ainda aprovação formal.
Este normativo representa um esforço de harmonização que ultrapassa o mero tecnicismo jurídico. Ao longo das últimas décadas, a abordagem ao fenómeno tem variado amplamente entre Estados-Membros, produzindo um mosaico desigual de conceitos, tipificações e níveis de repressão. Esta heterogeneidade, que poderia ser tolerável em matérias de menor gravidade, revelou-se contraproducente num domínio intrinsecamente transnacional: a corrupção não respeita fronteiras, migra entre sistemas e procura inevitavelmente os pontos de menor resistência. A iniciativa da Comissão traduz, queremos crer, uma tentativa de fortalecer a arquitetura moral e institucional da União, assegurando que o combate à corrupção deixa de depender de acasos nacionais e passa a assentar num compromisso compartilhado.
De todo o modo, a motivação política desta diretiva não nasce no vazio. A Europa foi recentemente confrontada com episódios que expuseram como a integridade das suas instituições pode ser permeável. O Qatargate não foi apenas um incidente isolado: foi a demonstração pública de que redes de influência, interesses externos e práticas corruptivas podem infiltrar-se nas engrenagens de decisão europeias, com potencial para distorcer prioridades públicas e comprometer a legitimidade dos processos democráticos. Mais recentemente, as detenções ocorridas no contexto do Natogate (suspeitas de corrupção sobre a NATO Support and Procurement Agency (NSPA), em que antigos funcionários da agência são acusados de facilitar contratos militares a empresas privadas, mediante subornos e acesso a informações privilegiadas) expuseram a vulnerabilidade das instituições europeias a influências externas e a práticas ilícitas de sedução do poder.
E é neste cenário pouco bucólico, marcado pela instabilidade, que surge o imperativo de reforço das capacidades de defesa dos Estados-Membros. Estes vetores, aparentemente distintos, convergem numa mesma interrogação: estaremos a dotar o Estado — e a União — de condições institucionais sólidas para resistir à erosão silenciosa da integridade pública? Enquanto se discutem reformas normativas, a realidade geopolítica impõe outra urgência. A guerra na Ucrânia e a instabilidade internacional desencadearam um movimento de rearmamento e de aumento da despesa em defesa por parte de grande parte dos países europeus. Portugal acompanha esta tendência, quer por imperativos de segurança, quer pelo compromisso de progressão para os 2% do PIB exigidos pela NATO.
Todavia, a história demonstra que a defesa constitui um dos setores onde o risco de corrupção é mais acentuado. Os contratos militares envolvem valores avultados, tecnologias complexas e margens de confidencialidade que, se não forem cuidadosamente reguladas, podem criar zonas de sombra onde prosperam práticas opacas. Quando o Estado investe massivamente em capacidades militares sem reforçar simultaneamente os instrumentos de controlo, abre-se uma brecha perigosa entre necessidade estratégica e escrutínio democrático.
A lição é, portanto, inequívoca: não basta confiar na robustez formal das instituições; é preciso reforçar os seus mecanismos internos de resiliência. E isso implica normas claras, fiscalização independente, cultura organizacional de integridade e uma vigilância permanente por parte da sociedade civil.
É neste enquadramento europeu que Portugal deve considerar o seu próprio percurso. A avaliação da anterior Estratégia Nacional Anticorrupção permanece por concluir; a conceção de uma nova estratégia, entretanto anunciada, tarda em consolidar-se; o regime de transparência da influência política (regulação do lóbi), após dez anos de intermitências, parece agora prestes a avançar, com a aprovação há dias de um diploma na especialidade. Estas insuficiências não constituem meros detalhes administrativos: representam fragilidades estruturais que podem minar a capacidade do país para enfrentar os desafios que se avolumam.
No essencial, o combate à corrupção não diz apenas respeito a desvios individuais, mas à capacidade de uma comunidade política se governar segundo princípios de justiça, probidade e responsabilidade pública. A integridade, nesse sentido, é um bem coletivo, que deve, portanto, ser defendido não apenas em dezembro, mas todos os segundos do ano: não se vê, mas sente-se na confiança social; não ocupa manchetes quando funciona, mas compromete o futuro quando falha.

