Óscar Afonso,  ECO Magazine

O caso das barragens ultrapassa em muito a dimensão técnica de um diferendo fiscal: é um teste à solidez do Estado de Direito e à maturidade institucional do país.

Nos últimos dias, o debate público reacendeu-se em torno de um caso que há muito simboliza o modo como, em Portugal, se tende a confundir poder económico com privilégio fiscal.

As afirmações recentes do Ministro das Finanças sobre o último desenvolvimento do caso das barragens são um exemplo paradigmático disso mesmo a vários níveis. Em particular, ao admitir a possibilidade de que a Autoridade Tributária (AT) possa não cumprir o despacho do Ministério Público (MP) para cobrar à EDP 335,2 milhões de euros de impostos devidos pelo negócio de venda de barragens.

Não se trata apenas de uma frase infeliz, mas uma afronta ao princípio elementar de igualdade perante a lei, deixando uma ferida aberta na confiança dos cidadãos perante as instituições que a aplicam.

Perante o clamor público, o Ministro pareceu esboçar uma desculpa, ao dizer que não tinha lido o despacho do MP, o que não deixa de ser surpreendente. Só que essa fragilidade apenas justificaria um discurso mais cauteloso e responsável por parte do titular do ‘cofre público’, em coerência com a Lei.

Mas as afirmações não se ficaram por aí, pois o Ministro sugeriu um caminho de litigância à empresa e não pareceu ter pressa de receber os impostos devidos para melhorar as contas públicas, como é seu dever e faz parte das funções que lhe foram confiadas.

É como se o guardião das finanças públicas tivesse esquecido o papel de servidor do Estado e, por um instante, falasse como presidente de uma grande e importante empresa privada.

A verdade é que Miranda Sarmento mostra coerência ao longo do tempo, pois mesmo na altura em que era apenas o ‘ministro sombra das Finanças’ de Rui Rio — que defendeu esta justa causa do pagamento de impostos pela venda de barragens —, nunca ousou enfrentar a EDP a este respeito.

Declarações que não deviam ter acontecido

Na semana passada, ficamos a saber que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) concluiu que houve violação da lei fiscal no negócio das barragens e que há impostos por pagar, tendo, por isso, dado ordens expressas e públicas à AT para “proceder à cobrança dos impostos em falta”.

Em reação a esta decisão, o ministro das Finanças produziu três afirmações perturbadoras, ao referir que:

(i) “A AT analisa a situação fiscal de qualquer contribuinte e decide pela liquidação ou não do imposto”;

(ii) “Se decidir pela liquidação de impostos, seja pelo montante que for, qualquer contribuinte tem o direito de litigar, de ir para o contencioso tributário”;

(iii) “É extemporâneo falar-se de qualquer valor da arrecadação de imposto este ano, ou no próximo ano, ou nos próximos anos”.

A afirmação mais grave é claramente a primeira, ao abrir a possibilidade de que a AT possa não cumprir a decisão do MP.

Mostra que o Estado parece continuar a não querer cobrar impostos a esta grande empresa relativos à operação de elevado montante das barragens — tema incómodo que o Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM) trouxe a público, procurando defender os direitos legítimos da população desses territórios, cujos municípios são titulares de parte relevante das receitas fiscais do negócio, além de suportarem os impactos ambientais decorrentes da implantação das barragens.

Ao mesmo tempo, só para dar um exemplo, um qualquer cidadão que se esqueça de pagar um imposto, como o IRS, dentro do prazo — ou se tenha enganado no pagamento (mesmo que por míseros dois cêntimos a menos, como já me aconteceu) — é rapidamente ‘presenteado’ com uma carta ‘ameaçadora’ da AT para pagar o mesmo com juros de mora ou sujeitar-se a um processo de execução fiscal. Tal mostra uma desigualdade gritante entre contribuintes de diferente poder económico, numa demonstração clara de um Estado ‘forte com os fracos e fraco com os fortes’, o que corrói a confiança nas instituições.

De nada vale o Ministro defender-se dizendo que não tinha lido o despacho do MP — a responsabilidade inerente às suas funções acarreta que deve procurar estar sempre bem informado e, quando tal não é possível, pronunciar-se sempre apenas sobre o que conhece, tendo falhado nestas duas vertentes.

Se o tivesse lido, o Ministro saberia que os impostos são devidos e que, enquanto responsável máximo da administração tributária (n.º 3 do artigo 1.º da Lei Geral Tributária), lhe cabe apenas assegurar que devedor os paga e cumpre a lei, como qualquer contribuinte, e não tentar relativizá-la.

De um Ministro das Finanças estaria à espera — e penso que todos os cidadãos, a começar pelos demais contribuintes — que dissesse algo como a imediata indicação à AT para exigir à EDP todos os impostos devidos o mais rápido possível, aplicando a determinação do MP com qualidade e segurança jurídica.

O Ministro parece ainda ignorar o princípio jurídico de que “o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém”. É um princípio fundamental do direito que estabelece que todas as pessoas, mesmo que desconheçam a legislação aplicável, estão obrigadas a segui-la, com a agravante que o Ministro deve ser um fiel garante do cumprimento da lei — neste caso, a determinação concreta do MP para que a EDP pague os impostos devidos — nas funções que lhe foram confiadas, que jurou cumprir perante o Presidente da República, sob compromisso de honra, aquando da sua tomada de posse.

A segunda afirmação, ao mencionar “seja pelo montante que for”, abre a possibilidade de que a verba a cobrar pela AT seja menor do que a determinada no despacho do MP, desafiando também a sua decisão. O resto da afirmação indica a via da litigância que pode ser trilhada pelo contribuinte, seguindo a mesma linha de maior preocupação com a sua defesa do que com o interesse do Estado — e, inerentemente, do resto dos contribuintes, a esmagadora maioria sem o poder da EDP — em cobrar esses impostos devidos.

Quanto à terceira afirmação, “é extemporâneo falar-se de qualquer valor da arrecadação”, embora factual — decorre da segunda, pois o eventual recurso a litigância pela EDP não permite saber em que ano os impostos entrarão nos cofres públicos —, também poderia ter sido produzida pelo Presidente executivo da EDP, que reagiu ao despacho do MP garantindo que o grupo “pagará os impostos que forem exigidos”, embora se “reserve o direito de decidir em função daquilo que vier a ser determinado”, até porque na altura ainda não tinha sido formalmente notificado da decisão.

De um Ministro das Finanças estaria à espera — e penso que todos os cidadãos, a começar pelos demais contribuintes — que dissesse algo como a imediata indicação à AT para exigir à EDP todos os impostos devidos o mais rápido possível, aplicando a determinação do MP com qualidade e segurança jurídica.

Tão simples quanto isto, em vez de dizer que a AT poderia não cobrar de todo os impostos ou cobrar apenas parte, e que o contribuinte poderá tentar litigar e não espera receber tão cedo o dinheiro (ou de todo), o que resume o essencial das três frases.

Quanto à posição da EDP, não posso deixar de notar a enorme mudança face à reação inicial perante a denuncia original do MCTM. Na altura, a EDP, os seus fiscalistas e mesmo membros dos Governos menosprezaram as posições do Movimento, mas a persistência deste e o seu elevado grau de domínio da envolvente fiscal do negócio vieram a prevalecer e foram agora integralmente consagrados pelo MP, como desenvolvo mais adiante.

Após o conhecimento do despacho, já ninguém ousa colocar em causa a justeza das razões do Movimento e ninguém defende o comportamento da EDP.

Dado o enorme peso do centralismo neste país, como tenho vindo a denunciar, e a ligação do mesmo ao poder económico, como evidencia este caso das barragens, não me admira nada que este tipo de discurso de sobranceria e desprezo pelo interior esteja alinhado entre as duas esferas.

A desmontagem da falsa “reestruturação” engendrada para evitar impostos

O despacho do MP é minucioso. Desmonta, ponto por ponto, socorrendo-se de documentos da própria EDP (em especial o plano estratégico apresentado em 2019), uma construção jurídica montada para fazer passar por reestruturação empresarial, isenta de impostos, o que, na verdade, foi uma simples alienação de ativos e um trespasse.

O objetivo de quem concebeu o negócio foi claro: beneficiar do regime de neutralidade fiscal, criado para operações de reorganização empresarial que aumentem a rentabilidade e competitividade das empresas e da economia em geral. Esse regime — que isenta essas operações de IRC, IMT e Imposto do Selo — só se aplica quando há ganhos reais de especialização e eficiência nas operações de cisão de empresas ou de escala e poder negocial nas operações de fusão, ambas alegadas na operação.

Mas nada disso ocorreu no caso da venda das barragens.

O despacho, sustentado em documentos internos da própria EDP, demonstra que a operação teve como único propósito reforçar a liquidez e reduzir o endividamento da empresa, através da venda de ativos — incluindo três dos mais valiosos (as barragens do Douro Internacional, Miranda do Douro, Picote e Bemposta) e três problemáticos (Baixo Sabor, Feiticeiro e Foz Tua).

Para que uma cisão de empresas beneficie dos incentivos fiscais, a lei exige que os ramos de negócio envolvidos sejam autonomizados antes da operação — isto é, que funcionem por si mesmos, porque a ideia é tornar essas unidades empresariais mais competitivas, inseridas em novas estruturas societárias.

Não era o caso das barragens, pois a empresa adquirente não estava preparada para operar nem para comercializar a energia. Foi a própria EDP que continuou a assegurar essas funções, agora como prestadora de serviços. Além disso, a nova sociedade teve de celebrar novos contratos de raiz com fornecedores, porque os que herdou não bastavam para que a operação das barragens pudesse prosseguir sem quebras de continuidade.

Existe uma divergência insanável entre a aparência de reestruturação empresarial, que a operação artificialmente montada através de três negócios — um de cisão, outro de venda de ações e outro de fusão — alegava, e a realidade objetiva dos factos desmontada pelo MP. Essa realidade foi uma venda de ativos e um trespasse de um estabelecimento industrial, sujeitos a Imposto do Selo, IMT e IRC e derrama.

O despacho é claro: não houve reestruturação empresarial. Houve uma montagem jurídica formal, artificialmente construída para escapar ao pagamento de impostos, num caso claro de evasão fiscal, como explico em detalhe mais à frente.

Alertas ignorados e confiança desmedida que levanta suspeitas

Há outro dado relevante: Resulta do despacho do MP que o próprio diretor de compliance e a diretora de assuntos fiscais da EDP alertaram a administração de que a operação poderia estar sujeita ao pagamento de impostos.

O negócio só avançou porque, por exigência dos adquirentes de inclusão de uma cláusula contratual que os libertasse do pagamento dos impostos devidos: caso a AT viesse a exigir o pagamento desses impostos, seria a EDP a suportá-los, mesmo nos casos em que a obrigação recaísse no próprio adquirente.

Aparentemente, o adquirente não avançaria para o negócio se tivesse de pagar impostos e a EDP estaria convicta de que nunca teria de os pagar, confiando num Estado que ‘parece’ não os querer cobrar.

Surpreende, por isso, a ligeireza, confiança e até sobranceria com que o negócio foi montado, assumindo que a fatura fiscal jamais chegaria aos envolvidos.

E surpreende ainda que só cerca de um mês antes da venda, quando o MCTM trouxe o tema a público, a EDP tenha percebido que o Imposto do Selo poderia ser devido.

Foi precisamente o sobressalto cívico liderado pelo Movimento que motivou a investigação do DCIAP, iniciada em fevereiro de 2021. O despacho do MP consagra as teses sempre defendidas pelo Movimento ao longo destes anos em diversas posições e artigos de opinião (alguns da minha autoria) sobre o assunto.

A substância económica prevaleceu sobre a forma jurídica no despacho do MP, que a AT deve aplicar

O despacho confirma o que o Movimento — e vários analistas — têm vindo a defender há anos: a operação foi, na realidade, uma venda de ativos e um trespasse de estabelecimento industrial, sujeitos a Imposto do Selo, IMT, IRC e derrama, como já referido.

É daí que resultam os 335,2 milhões de euros devidos, juros compensatórios de 4% ao ano desde 17 de dezembro de 2020 até à data de liquidação dos impostos, e mais juros de mora de 8,3% se não houver pagamento após a liquidação, além das coimas que sancionarão as infrações fiscais praticadas.

Isto significa que há um incentivo para a EDP resolver a questão rapidamente, pois pagará cada vez mais juros se não o fizer, além de poder beneficiar da redução de coimas se regularizar a situação de incumprimento em que se colocou. Isto a não ser que encontrem algum subterfúgio a explorar, o que parece agora mais difícil, mas não impossível, atendendo ao passado recente.

Cabe à AT liquidar os impostos em falta, fundamentar bem o enquadramento e proceder à cobrança com rigor técnico, solidez jurídica e rapidez. Era isso que o Ministro das Finanças — como responsável máximo da administração fiscal — deveria ter dito e é isso que agora dele se espera.

Infelizmente, o passado recente mostra que a atuação e as interpretações da diretora-geral da AT favoreceram o não pagamento de impostos da EDP no caso das barragens, o que abala a confiança dos municípios, das populações e dos cidadãos em geral.

É a reposição dessa confiança que se esperava do Ministro, porque a confiança nas instituições — neste caso, a AT — é um pilar essencial da própria Democracia.

Conclusão

O caso das barragens ultrapassa em muito a dimensão técnica de um diferendo fiscal: é um teste à solidez do Estado de Direito e à maturidade institucional do país.

Quando o poder político parece vacilar perante um grande contribuinte, fragiliza-se a confiança dos cidadãos e das empresas na imparcialidade do sistema fiscal — em que assenta a própria economia de mercado — e, em geral, nas instituições, que são a base da nossa Democracia.

Os cidadãos sentem esta injustiça não como um detalhe jurídico, mas como um insulto. Porque cada português que paga os seus impostos sem exceção, cada família que luta por viver com dignidade, percebe que o Estado que devia protegê-los se parece ajoelhar perante os mesmos de sempre e que nem precisam.

E é por isso que a indignação é legítima. Não está apenas em causa a cobrança de um valor significativo de impostos, mas a garantia de que a lei se aplica de forma igual a todos e ninguém está acima dela, incluindo a EDP. Um Estado que é implacável com os pequenos e complacente com os grandes, desrespeita as leis que cria, mina a sua autoridade moral e compromete a neutralidade fiscal em que assenta o normal funcionamento da economia, pois este princípio é uma condição essencial da concorrência e da credibilidade do investimento.

Portugal não quer um Estado arbitrário nem capturado, mas sim um Estado justo, previsível e equitativo — capaz de fazer cumprir a lei sem hesitações, mesmo quando os interesses em causa são poderosos.

É esse o verdadeiro dever de igualdade perante a lei, que não se proclama — pratica-se.

Cabe agora ao Ministro e à AT provarem de que lado estão — do lado da lei e dos contribuintes, ou do lado do privilégio aos mais poderosos.