Óscar Afonso, Jornal SOL
Quando uma multinacional é capaz de organizar uma operação de milhões para evitar pagar o que qualquer pequena empresa do interior é obrigada a liquidar, o sinal que se envia à sociedade é devastador.
A decisão do Ministério Público (MP) de exigir à EDP o pagamento de 335 milhões de euros em impostos pela venda de seis barragens do Douro é um passo marcante para a justiça fiscal e territorial em Portugal. Depois de anos de silêncio, inércia e complexas interpretações jurídicas, o Estado reconhece que o negócio não foi neutro nem apenas financeiro. Foi intencionalmente montado para fugir ao pagamento dos impostos devidos, prejudicando as comunidades e os territórios que a eles têm direito, as mesmas comunidades que suportaram os custos ambientais e sociais da produção de energia.
Desde 2020, quando a EDP vendeu as barragens ao consórcio liderado pela Engie, o caso tornou-se símbolo da desigualdade fiscal entre os grandes grupos económicos e os cidadãos comuns. Não fosse o Movimento Cultural da Terra de Miranda (MCTM), o negócio teria passado despercebido e os impostos devidos teriam sido esquecidos – como, tudo parece indicar, era essa a conveniência desejada.
A operação foi estruturada de forma a escapar à tributação do imposto do selo e do IRC sobre mais-valias, recorrendo a um planeamento fiscal agressivo e a uma reorganização societária que deslocou o centro da operação para fora das regras habituais de tributação. A tudo isto somou-se a perceção de impunidade e a sensação de que, mais uma vez, o interior do país ficava extraído da exploração dos seus recursos.
O recente despacho do MP confirma o essencial: houve imposto devido. E é isso que importa. A exigência de 335 milhões não é apenas uma questão de caixa para o Estado – é uma afirmação de princípio: o lucro gerado com bens públicos e recursos territoriais deve contribuir para o bem comum.
Esta decisão pode não significar que o valor chegará em breve aos cofres públicos ou, sobretudo, às autarquias e populações. Face à lentidão da justiça, o processo judicial poderá arrastar-se, entre impugnações, recursos e arbitragens tributárias. O próprio ministro das Finanças já afirmou que seria “extemporâneo” contar com esta receita nos próximos orçamentos, mostrando o que o país já sabia: quando estão em causa grandes interesses, o sistema deseja a lentidão à justiça.
Além disso, o MP é definitivo: as barragens são prédios e, portanto, têm de pagar IMI. No seio do MCTM sempre se entendeu assim – infraestruturas de enorme valor patrimonial – devem ser tributadas como imóveis e a receita caber aos municípios. Em muitos casos, essas autarquias nunca receberam um cêntimo de IMI, apesar de suportarem os impactos territoriais e ambientais das albufeiras. É uma omissão que agrava as desigualdades regionais e exige clarificação definitiva do legislador e da administração fiscal.
O MCTM tem defendido desde o início que o essencial não é apenas cobrar o imposto devido, mas garantir que parte relevante dessas receitas reverte para os territórios onde estão os recursos explorados. Não faz sentido que Miranda do Douro, Mogadouro, Alfândega da Fé e outros municípios – que convivem há décadas com os impactos ambientais – continuem a ser tratadas como notas de rodapé nas contas nacionais. É uma questão de coesão territorial, de justiça distributiva e, no fundo, de credibilidade do Estado.
A fiscalidade deve servir para corrigir desigualdades, não para as agravar. Quando uma multinacional é capaz de organizar uma operação de milhões para evitar pagar o que qualquer pequena empresa do interior é obrigada a liquidar, o sinal que se envia à sociedade é devastador. Por isso, este caso é muito mais do que um contencioso entre a EDP e o fisco: é um teste à capacidade do Estado português de impor regras iguais a todos, independentemente do poder económico.
O progresso agora registado mostra que a pressão e persistência cívica de movimentos locais compensa, e que a justiça fiscal pode ser conquistada, mesmo quando o adversário é poderoso.
Mas o Estado tem de ir mais longe. Precisa de rever como tributa a exploração de recursos naturais, assegurando que a tributação não se perde em labirintos jurídicos e que o retorno financeiro chega aos territórios de origem. O caso das barragens deve ser o ponto de viragem para um novo modelo de governação fiscal – mais transparente, descentralizado e justo.
A decisão do MP é uma vitória parcial, mas significativa. Mostra que a verdade fiscal pode tardar, mas não deve falhar. O próximo passo será garantir que o tempo da justiça não volta a ser o tempo do esquecimento.

