Patrick de Pitta Simões, Jornal SOL
A quantidade de denúncias é um indicador falível para medir a eficácia dos canais
O Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações, estabelecido pela Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, transpôs para o ordenamento jurídico português a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União.
Esta Diretiva prevê que os Estados-Membros comuniquem anualmente à Comissão todas as informações pertinentes à transposição e aplicação da mesma.
Por sua vez, com base nas informações comunicadas, a Comissão apresenta ao Parlamento Europeu e ao Conselho um relatório sobre a transposição e a aplicação da Diretiva.
Os dados estatísticos devem ser apresentados de preferência de forma agregada e conter:
- O número de denúncias recebidas pelas Autoridades Competentes;
- O número de investigações e de processos iniciados na sequência dessas denúncias e o seu resultado; e
- Se determinada, a estimativa do prejuízo financeiro e os montantes recuperados na sequência de investigações e processos relacionados com as violações denunciadas.
Tendo em conta as estatísticas dos Estados-Membros apresentadas, a Comissão apresenta ao Parlamento Europeu e ao Conselho até 17 de dezembro de 2025 um relatório em que seja avaliado o impacto da legislação nacional de transposição da Diretiva.
O relatório deve avaliar o modo de funcionamento da Diretiva e deve ser ponderada a necessidade de medidas suplementares, incluindo, se for caso disso, alterações destinadas a alargar o âmbito de aplicação Diretiva a outros domínios ou atos da União, em particular à melhoria do ambiente de trabalho para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores e as suas condições de trabalho.
Considera-se, aliás, que esta matéria já deveria estar expressamente incluída no âmbito de aplicação material da Diretiva e, em consequência, do RGPDI.
Para além da avaliação o relatório deve analisar a forma como os Estados-Membros fizeram uso dos mecanismos de cooperação existentes como parte das suas obrigações de dar seguimento às denúncias e, de um modo mais geral, a forma como cooperam em casos de violações com uma dimensão transfronteiriça.
A Comissão deve publicar os relatórios e torná-los facilmente acessíveis.
Por seu turno, a nível nacional, nos termos do RGPDI, as Autoridades Competentes, as que têm de dispor de canais de denúncia externa, devem apresentar à Assembleia da República, até ao fim do mês de março de cada ano, um relatório anual contendo:
- O número de denúncias externas recebidas;
- O número de processos iniciados com base naquelas denúncias e o seu resultado;
- A natureza e o tipo das infrações denunciadas;
- O que demais considerem pertinente para melhorar os mecanismos de apresentação e seguimento de denúncias, de proteção de denunciantes, de pessoas relacionadas e de pessoas visadas, e a ação sancionatória.
Neste seguimento, a 24 de setembro deste ano, a Assembleia da República publicou no seu website a análise dos relatórios de denúncias externas apresentados a si em 2025 relativos ao ano de 2024
A referida avaliação, com algumas gralhas de identificação e de redação normativa, resulta da apresentação de 171 relatórios, oriundos de 165 Autoridades Competentes (6 são de outras entidades), remetidos à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, dos quais 61 foram rececionados depois de março.
Nesta é mencionado que há disparidade na forma de apresentação da informação e nos critérios utilizados para o tratamento estatístico por parte das entidades que facultaram elementos, o que dificulta a análise e compromete a obtenção de dados reais.
Se assim é, então a Assembleia da República pode corrigir essa situação enquanto legislador e uniformizar critérios, ou esclarecer de forma clara e inequívoca que compete ao Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) que o faça nos âmbitos das suas atribuições (e.g. emitir orientações e diretivas, recolher e organizar informação, produzir e divulgar regularmente informação).
Na tabela referente à comparação de denúncias face aos anos anteriores é referido que para os dados de 2022 a essa data não se tinha estabelecido uma forma de tratamento dos relatórios recebidos, não sendo possível aferir o número de processos iniciados. Sendo assim, as questões que se colocam são: qual é a metodologia adotada para os dados que ora se apresentam? Com essa metodologia não é possível reanalisar os elementos de 2022 e indicar quantos processos foram iniciados? Não se tem interesse?
Da informação estatística, apenas se destaca a relativa à percentagem de denúncias recebidas em 2024 (as demais podem ser verificadas no documento supra identificado): 57% foram consideradas, pelas entidades, como não enquadráveis no RGPDI; 37% não foram identificadas a natureza das denúncias e só 6% foram identificadas e enquadradas como infrações no âmbito RGPDI.
Entende-se que a quantidade de denúncias é um indicador falível para medir a eficácia dos canais: ter muitas comunicações não atesta a ocorrência de infrações (podem ser falsas, repetidas, sem sentido ou enquadramento), ao passo que a inexistência ou escassez de denúncias pode indiciar problemas mais profundos, como o desconhecimento do sistema ou a desconfiança dos potenciais denunciantes nas garantias de segurança contra retaliações. Por conseguinte, os dados quantitativos apresentados correm o risco de configurar uma mera ilusão estatística.
A Comissão Parlamentar da Assembleia da República identifica ainda que a Direção-Geral de Artes (DGA) assumiu estar em situação irregular quanto à obrigação de dispor de um canal de denúncias externas, autónomo do canal de denúncias internas, o que constitui contraordenação grave, conforme previsto e punido pelo RGPDI.
Face ao exposto, coloca-se agora a questão de saber o que é o MENAC, que tem a competência para o processamento e aplicação das coimas, irá fazer? Que exemplo quererá dar quando a infração é de conhecimento público?
Se não constitui uma contraordenação a não apresentação à Assembleia da República, até ao fim do mês de março de cada ano, de um relatório anual sobre as denúncias externas, quer tenham existido ou não, será que a coima a aplicar à DGA pode ser atenuada?
Não deverá o legislador alterar a lei no sentido de estabelecer uma contraordenação pela não apresentação do relatório anual sobre as denúncias externas? Crê-se que sim, dado que, caso contrário, a ausência de penalização desincentiva o cumprimento, bem como quem cumpre “voluntariamente” ainda se sujeita a admitir que não age em conformidade com a lei.

