António João Maia, OBEGEF
A democracia contém em si as sementes capazes de a destruir, como uma espécie de “botão de autodestruição
Todos os anos, logo nas primeiras aulas de ética do curso de administração pública, abordo com os alunos as noções fundamentais associadas ao conteúdo programático da cadeira, de entre as quais se destacam: a ética e a sua importância na vida em sociedade; os deveres e as responsabilidades de integridade que estão sobre os ombros dos cidadãos em geral e dos servidores públicos em particular; o que é o Estado, qual a sua função e modo como se organiza, funciona e é financiado; e acabamos por passar incontornavelmente pelo artigo 2º do texto constitucional, cuja epígrafe é “Estado de direito democrático”, e dou por mim a questionar-me sobre as responsabilidades dos sucessivos governos, desde a aprovação do documento, em abril de 1976, até agora, relativamente às medidas adotadas para “aprofundamento da democracia participativa”.
Mas vejamos o que nos diz o referido artigo constitucional:
“Artigo 2.º (Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”
A Constituição da República é o texto normativo fundamental, o que significa que todas as leis que foram criadas em Portugal desde então, ou que venham a ser criadas enquanto vigorar, têm de obedecer e estar alinhadas com os princípios nele consagrados. E se, no seu primeiro artigo, se estabelecem os critérios caracterizadores da República Portuguesa (“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”), no segundo, como estamos a ver, identificam-se as características democráticas que foram e continuam a ser consideradas as mais adequadas para configurar o Estado, a seu modelo de organização e a função que deve assegurar junto da sociedade e dos cidadãos.
E de facto, lá encontramos que o Estado português se organiza e funciona com base em leis, e que as estruturas que têm poder para as criar são escolhidas pela vontade soberana e livre do povo (“Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”). Que essas estruturas (“organização política democrática” – Presidente da República; Assembleia da República e Governo) se articulam de modo a evitar a concentração do poder (“respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes”), com o propósito de promoverem a harmonia económica, social e cultural, incluindo o envolvimento dos cidadãos nos processos de interesse comum, ou seja, o tal “aprofundamento da democracia participativa”.
A democracia é, por natureza, um sistema de organização política (muito) frágil, porventura o mais frágil dos que se conhecem (Churchill terá afirmado que a democracia é o menos mau dos sistemas de organização política conhecidos), precisamente porque se alimenta da síntese da vontade dos cidadãos, cujo momento mais expressivo se traduz no ato da votação. A democracia sobrevive de uma cidadania interessada, comprometida e ativa. A democracia requer essa disponibilidade e envolvimento permanente de todos, para cuidarem, olharem e sobretudo para a sustentarem e defender.
É que a democracia contém em si as sementes capazes de a destruir, como uma espécie de “botão de autodestruição”. A indiferença política, traduzida muito simplesmente por uma população menos esclarecida, menos envolvida, menos capaz, menos consciente do seu papel e da sua importância, e, por isso, pouco responsável e habilitada para esse processo participativo da tomada de decisão por todos, tendo em vista alcançar as decisões que melhor servem o interesse de todos.
Mas para que a generalidade dos cidadãos esteja mais envolvida e disponível para esta participação responsável, tem de dispor de alguma formação e informação sobre questões como: o modo como o sistema democrático funciona; porque funciona assim e para que serve; o que é o Estado e qual a sua função; como se organizam e segmentam os poderes nas estruturas de organização e gestão do Estado: porque pagamos impostos, e para que servem; o que são e qual a função dos partidos políticos; ou o que é e como funciona a economia de um país. O cidadão deve dispor das ferramentas necessárias e suficientes para, de modo consciente, racional e responsável, contribuir nos momentos próprios (máxime, nos atos eleitorais) para as decisões coletivas (democráticas) sobre questões do interesse de todos.
A ausência destas competências é menos culpa – se é lícito falar-se em processos culposos – das pessoas, do que das sucessivas lideranças políticas que, em Portugal, ao longo de praticamente cinco décadas, têm negligenciado o processo formativo dos cidadãos relativamente a estarem mais habilitados para uma participação mais ativa, de acordo com as expectativas do que deve ser a sua participação na vida democrática e nas questões de interesse coletivo. Os sucessivos relatórios do instituto Varieties of Democracy (V-DEM), da Universidade de Gotemburgo, têm revelado sempre uma posição modesta de Portugal relativamente ao indicador “participação ativa dos cidadãos nas questões de interesse coletivo”, o que pode evidenciar, pelo menos em parte, este desligamento associado a uma menor formação e informação das pessoas sobre o seu papel no funcionamento da democracia e das estruturas do Estado. E se associarmos a este fator a crescente perda de credibilidade e confiança junto da classe política, facilmente se compreende a adesão aos novos discursos que têm emergido na sociedade.
Uma sociedade composta por uma franja razoável de cidadãos menos esclarecidos e informados, é uma sociedade mais exposta a riscos de poucos decidirem por todos, e, sobretudo, de muitos serem facilmente manipulados por discursos populistas.
É por isso fundamental que haja mais aposta na inclusão destas temáticas nos currículos dos diversos níveis de ensino, desde o básico, passando pelo secundário (como agora é assumido pela Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania), até ao universitário, e que esta inclusão seja impulsionada por via das tais políticas públicas de aprofundamento da democracia participativa. O Observatório de Economia e Gestão de Fraude apresentou, aquando das últimas eleições, um conjunto de sugestões no âmbito da formação cívica que nos pareceram adequadas neste âmbito.
Recentemente adquiri, num alfarrabista, o livro “Organização Política e Administrativa da Nação”, de autoria de J. Estêvão Pinto e José da Silva, editado pela Livraria Popular, para o 6º ano de escolaridade. O livro é seguramente dos anos sessenta, dado o design que apresenta. Nele encontramos a abordagem a noções tão importantes como: norma de conduta; soberania; elementos do Estado; formas e funções do Estado; Constituição; o indivíduo; a família; os organismos e a doutrina corporativa, ou ainda o município. Este é um sinal de que, apesar das críticas que lhe são feitas, o Estado novo – sim, o que foi deposto em abril de 1974 –, tinha algum cuidado para formar os cidadãos para uma participação cívica mais ativa. Depois da revolução, com a emergência da democracia, e sem que se compreenda muito bem as razões, estes temas foram gradualmente sendo afastados dos programas formativos dos mais novos.