Rute Serra, Jornal i online
Trata-se de perceber que a corrupção não é um problema técnico, mas uma questão de justiça. De saber quem fica para trás quando os favores circulam à frente.
Se nos dedicarmos à reflexão sobre o que é, para cada um de nós, a corrupção, concluiremos certamente de modo diferente. Para uns resume-se a uma falha de caráter, para outros, poderá ser apenas um assunto a tratar pelo foro penal, alguns conotá-la-ão com um desvio ético e outros ainda estarão convencidos que será um fenómeno que compromete a eficiência do Estado. Sim, é tudo isto. Mas e se refletíssemos sobre a corrupção de modo diferente — como um dos principais entraves à realização dos direitos humanos?
Foi precisamente este exercício que, em junho último, fez o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. A resolução aprovada em Genebra vai mais longe do que qualquer linguagem diplomática anterior: reconhece que a corrupção tem efeitos concretos e devastadores sobre os direitos fundamentais das pessoas. Na saúde, na justiça, na habitação, no ambiente. Cada contrato público manipulado, cada nomeação capturada, cada silêncio comprado, traduz-se em vidas mais curtas, oportunidades perdidas, desigualdades agravadas.
Portugal subscreveu, e bem, esta resolução. E fê-lo no mesmo mês em que o GRECO — o grupo anticorrupção do Conselho da Europa — nos chamou à razão. O seu relatório mais recente deixa um aviso direto: continuamos a falhar na prevenção da corrupção entre quem legisla, quem julga e quem investiga. Falta-nos um código de conduta eficaz para os deputados. Falta-nos transparência nos processos disciplinares das magistraturas. Falta-nos coragem para garantir que quem exerce poder responde por ele — não apenas em abstrato, mas na prática do dia a dia.
Esta coincidência entre o compromisso assumido na ONU e o alerta vindo de Estrasburgo não é mero acaso. É uma dissonância que nos obriga a escolher: queremos continuar a legislar contra a corrupção como quem resolve uma checklist internacional? Ou estamos dispostos a reconhecer que, enquanto a integridade não for regra e cultura, os nossos direitos continuarão a ser negociáveis?
Sim, criámos legislação, reformulámos entidades e lançámos estratégias. Continuamos, contudo, a ter dificuldade em perceber que a conformidade pessoal e organizacional não se basta com a produção normativa. Precisamos de saber transformar este esforço em ações concretas, com impacto efetivo e visibilidade pública bastante para que, de facto, confirmemos o verdadeiro compromisso do país na repressão deste problema.
Não se trata, portanto, apenas de eficácia institucional. Trata-se de democracia. Trata-se de perceber que a corrupção não é um problema técnico, mas uma questão de justiça. De saber quem fica para trás quando os favores circulam à frente. De compreender que a impunidade não é invisível: ela sente-se no atraso de uma cirurgia, na negação de uma licença, na ausência de resposta a uma denúncia legítima.
A resolução da ONU aponta o caminho certo: integrar o combate à corrupção nos planos de direitos humanos, envolver a sociedade civil, proteger quem denuncia, garantir independência à justiça e, sobretudo, medir o impacto da corrupção na vida das pessoas. O GRECO, com a sua análise agnóstica, mas cirúrgica, demonstra que ainda estamos longe de atingir o objetivo.
Portugal pode ser exemplo. Mas para isso tem de deixar de tratar a corrupção como uma exceção. É tempo de encará-la como aquilo que realmente é: uma violação sistemática da dignidade humana. E agir, com toda a capacidade das instituições, como se os direitos de todos dependessem disso — porque dependem.