Marcus Braga & outros, Nexo

    O desafio posto não é apenas desenvolver a escuta, mas a capacidade de traduzir essa escuta em ações coparticipativas no contexto do formulador e do executor da política

 

O problema do tamanho do Brasil

Em 1978, na voz da saudosa Elis Regina (1945-1982), as rádios tocavam que o Brasil não conhece o Brasil, trecho da canção “Querelas do Brasil”, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, um alerta para as mudanças que viriam nas décadas seguintes, no federalismo e no processo de implementação das políticas públicas, principalmente as políticas sociais.

A democratização trouxe toda uma agenda de apoio técnico e financeiro da União à gestão municipal, na execução descentralizada de políticas gestadas na capital, o que trouxe avanços de inclusão, de indicadores sociais e da redução da desigualdade regional, mas que não conseguiu eliminar o insulamento do Estado no processo de formulação, o
que era a tônica do governo militar.

Ouvir o cidadão é estratégia essencial para o sucesso da política pública. Aqui referimo-nos sobretudo ao cidadão que vive lá na municipalidade com suas necessidades reais, bem como os agentes públicos envolvidos com os desafios da implementação, da alocação dos recursos escassos e do cumprimento de tantas legislações insuficientes para lidar com tamanha complexa realidade, os chamados de “Burocratas de nível de rua” (Lipsky, 1980).

Este processo de escuta se fortalece com o crescimento da inclusão digital da população em um cenário de plataformização de governos e disseminação de tecnologias e redes sociais, mas que não é o suficiente. É preciso que o cidadão e o Estado tenham maior conhecimento para utilizar tais tecnologias, mas é preciso também que ocorra uma reformulação de padrões de atuação da administração pública, uma reengenharia sociotécnica do Estado que implemente novos padrões de interação com a sociedade baseados em transparência e accountability e em todo o ciclo da política pública (Peters et al., 2022; Filgueiras, F. 2025.).

Por que ouvir o cidadão, como se isso não fosse óbvio?

Romper esse isolamento estatal persistente a partir do ponto de vista do cidadão é muito mais do que uma questão de ethos democrático, de participação social e de inclusão, sendo também a chave da qualidade das entregas, em especial pela possibilidade de realimentação da formulação e da execução, promovendo a tão desejada efetividade, a confiança mútua entre cidadãos e governos e o funcionamento das instituições democráticas.

Discussão moderna, mas um tanto fora do mainstream, destaca a importância de se dar voz aqueles invisibilizados, enxergando-os não como objeto das políticas públicas, e sim como sujeito de direitos, mas que ao mesmo tempo, pela sua vulnerabilidade e fragilidade, tem dificuldade de se articular e compreender como funciona o governo, em especial em um mundo de tanta desinformação, sendo necessária uma postura ativa para ouvir e entender as situações vividas pelas comunidades onde a política se materializa (Rego; Pinzani, 2013).

Nogueira Filho (2022) e Fullan & Quinn (2022), em estudos sobre a política educacional, questionam essa supremacia da abordagem Top Down, indicando a necessidade de uma escuta ativa para além de metas e indicadores, para entender o quê e o porquê de a política não estar funcionando na ponta, a peça que falta, por vezes, para entender o todo até a avaliação, a partir da visão do formulador, que não dispõe da percepção de quem vive e operacionaliza a entrega como solução de problemas complexos.

Para exemplificar, podemos aplicar esta lógica a um programa social reconhecido e premiado em todo o mundo, o Programa Bolsa Família. Os resultados deste programa já mostram que cerca de dois terços dos dependentes de seus beneficiários não precisam mais receber os benefícios e quase metade conseguiu emprego com carteira assinada.

Entretanto, há ainda uma parte dos beneficiários que precisa ser ouvida com maior atenção. É importante estudar os beneficiários que ainda dependem deste programa para compreender quem são, quais são suas reais necessidades para além das que estão sendo tratadas, se vivem em situações de vulnerabilidade extrema ou outras necessidades que precisarão de políticas públicas mais focalizadas. Mas como alcançar esses beneficiários?

Instrumentos de avaliação e controle que oportunizam essa escuta

A internet realmente modificou o processo de interação com o cidadão na implementação de uma política pública e, nesta transformação, a transparência é direito fundamental.

Embora a Lei de Acesso à Informação, a LAI, tenha “pegado” e criado raízes, como se fala popularmente, a transparência ativa ainda tem alcance restrito em termos demográficos e geográficos. O usufruto deste direito fundamental ainda está concentrado na atuação incansável e admirável do jornalismo investigativo e de pesquisadores, muitas vezes com atuação focada em nível federal e em algumas regiões do país. Como este direito chegará efetivamente aos 5.571 municípios em todo o Brasil? Como alcançará populações não incluídas digitalmente, pessoas idosas, populações indígenas, quilombolas e economicamente vulnerabilizadas?

Os avanços de campanhas de comunicação sobre a existência do direito de acesso à informação e em como exercê-lo, a regulamentação e a efetividade dos mecanismos de implementação deste direito nessas diferentes realidades e para todos estados e os municípios é essencial.

A RedeLAI (Rede Nacional de Transparência e Acesso à Informação), iniciativa que foi lançada em maio de 2024, por órgãos de monitoramento da LAI dos diferentes entes federativos e a sociedade, objetiva encontrar e compartilhar soluções a estes desafios por meio de um ambiente colaborativo. Espera-se que se fortaleça e alcance efetivamente a política local, com foco em regiões com populações em situação de vulnerabilidade, onde o direito tem potencial de grande impacto na realidade dos cidadãos.

Ouvir o cidadão é estratégia essencial para o sucesso da política pública. Sobretudo ao cidadão que vive na municipalidade com suas necessidades reais, bem como os agentes públicos envolvidos com os desafios da implementação, da alocação dos recursos escassos e do cumprimento de tantas legislações insuficientes para lidar com tamanha complexa realidade, os chamados de “burocratas de nível de rua”

Os avanços das ouvidorias, consolidados na Lei nº 13.460/2017, são fundamentais para a melhoria da administração pública. Contudo, esse canal de comunicação com a sociedade tem sido frequentemente capturado por uma abordagem hegemônica centrada no combate à corrupção e em disputas políticas, o que acaba por negligenciar uma dimensão igualmente crucial: o uso das manifestações dos cidadãos como instrumento de aperfeiçoamento das políticas públicas.

Na área de auditoria governamental, o aspecto mais avaliativo da função controle, pululam consultas públicas sobre o escopo a ser auditado, sobre a qualidade de serviços, por vezes muito quantitativos e tabuláveis, carente ainda a tradução da percepção na ponta frente a diversidade regional do país, na armadilha de tudo se resumir a indicadores.

Destaca-se a experiência recente do programa “CGU Presente” da Controladoria-Geral da União, um avanço pautado em conceitos do extinto “Programa de fiscalização a partir de sorteios públicos” (2003-2015), de grande repercussão, e que traz agora uma visão para além de inspeções pontuais do modelo anterior, para uma discussão mais qualitativa, de escuta da população beneficiária de determinada política, ligando o território e a formulação na capital, com a capacidade interventiva do órgão de controle.

Não se trata de uma mera substituição de técnicas e métodos, tampouco da substituição da auditoria pela ouvidoria. O programa CGU Presente resgata a essência etimológica da atividade de auditoria — termo derivado do latim audire, que significa “aquele que ouve” — e reforça que a escuta não deve se limitar a uma manifestação de empatia. Ao contrário, propõe que a empatia seja condição necessária para uma escuta qualificada, orientada à produção de evidências sólidas que ampliem a compreensão de fenômenos de diversas naturezas (econômica, social, cultural e política) e de seus impactos sobre diferentes públicos, regiões e realidades (Santos, 2022), de modo a subsidiar decisões voltadas ao aprimoramento das políticas públicas.

Isso requer abordagens metodológicas que considerem o termo escuta em um sentido mais amplo e combinem técnicas como entrevistas, grupos focais, observação direta, etnografia, análise de narrativas etc., trazendo mais sentido aos resultados obtidos a partir de técnicas tidas como mais convencionais, como os métodos quantitativos, análises documentais, avaliação do desenho da política, estrutura de governança etc.

O CGU Presente traz esse potencial da compreensão de que para avaliar políticas públicas em um país grande, diverso e desigual como o Brasil, é necessário definir para cada trabalho uma metodologia sob medida, pois os objetos auditados não são comuns e repetidos e que, portanto, os próprios critérios utilizados como referência para a realização do trabalho de auditoria precisam ser constantemente verificados à luz da comparação entre a implementação idealizada pelo gestor federal, a implementação viabilizada pelos atores locais.

Enxergar e ouvir esse país invisibilizado, não padronizado, e que figura em portarias e desenhos de políticas, é a chave da qualidade da implementação e da efetividade e para a confiança social, para além de painéis de indicadores. Uma visão de captar esse Brasil profundo e suas querelas pela atividade de auditoria e que alimenta, até hoje, iniciativas como o “CGU Presente”, trazendo o ethos democrático para esse tipo de atividade, por vezes tão árida.

Saber ouvir e traduzir em ações

O desafio posto não é apenas desenvolver a escuta, mas a capacidade de traduzir essa escuta em ações coparticipativas no contexto do formulador e do executor da política. Sair do romântico de se impressionar com aquela realidade, convertendo o diagnóstico em realidade e informação que vá subsidiar a qualidade da política, indicando o que é relevante e o grau de customização necessário, sem tratar o país como um bloco homogêneo, pois a realidade é outra, ou melhor, são muitas outras. O Brasil contém uma diversidade riquíssima de “brasis” e essa diversidade precisa estar refletida em todo o ciclo das políticas públicas.

BIBLIOGRAFIA
Filgueiras, F. Mudanças sociais, instrumentos digitais de ação pública e reengenharia sociotécnica do Estado. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 30, p. e92811, 2025. DOI: 10.12660/cgpc.v30.92811. Disponível aqui. Acesso em: 27 abr. 2025.

Fullan, Michael; Quinn, Joanne. Coerência: Os Direcionadores Corretos para Transformar a Educação. Penso Editora, 2022.

Lipsky, M. Street Level Bureaucracy: Dilemmas of the individual in public services. Nova York: Russel Sage Foundation, 1980…

Link para matéria: https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2025/05/28/vox-populi-ouvir-como-estrategia-de-controle-e-avaliacao-das-politicas-publicas
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