Marcus Braga,  Blog Gestão, Política & Sociedade

O debate governamental no ano de 2024 transitou bastante em torno de um conceito que parece simples, mas não é: capacidades estatais. O fortalecimento dessas capacidades é, inclusive, um dos eixos do atual esforço de revisão do Decreto-Lei 200/1967 e da criação de uma nova Lei Geral da Gestão Pública (CALIXTO, 2024), e resta a pergunta que não tem comparecido muito no debate: em que medida a função controle governamental pode contribuir com o fortalecimento das capacidades estatais?

Texto seminal de Gomides e Pires (2014) define essas capacidades estatais por uma faceta técnico-administrativa, pela ação da burocracia weberiana na construção de políticas públicas de qualidade; aliado a um aspecto político, de expansão dos canais de interlocução e negociação com atores sociais. Uma visão dual, que prevê uma burocracia qualificada, mas ao mesmo tempo inserida em um conjunto de mecanismos participativos que permitem que ela seja permeada pelas demandas populares, rompendo o insulamento burocrático (NUNES, 2003).

Uma visão que transcende a discussão gerencialista e suas simplificações, colocando o cidadão no centro da equação, não como um cliente, mas como sujeito cuja interação é essencial na construção de políticas públicas, que servem para a oferta de serviços de qualidade, mas que também figuram como fonte de confiança. Interessante entrevista recente traz excelentes ponderações sobre questão:

(...) Sem melhores serviços públicos universais, não há possibilidades de melhor integração social, mas não é suficiente. Os países da OCDE têm talvez o nível mais elevado de prestação de serviços públicos e, no entanto, têm enormes problemas de confiança dos cidadãos. Esta mesma questão foi colocada num painel em Washington, copatrocinado pelo CLAD, sobre o futuro da administração pública. E o moderador, que era britânico, fez exatamente esta pergunta. Como se explica o paradoxo de que nos países ricos há níveis tão baixos de confiança dos cidadãos no Estado? É um paradoxo.

Prestar bons serviços é necessário, mas não é suficiente. Precisamos estudar não tanto o lado da oferta, mas o lado da demanda. O que é que os cidadãos estão a exigir? (RAMOS, 2024).

E nesse contexto de capacidades estatais apresentado, o presente texto advogará que a função controle governamental pode contribuir com essas capacidades em dois grandes eixos, a saber: i) na mediação autônoma e qualificada na redução da assimetria informacional; e ii) no fortalecimento de capacidades estatais em accountability dos gestores, de forma emancipatória.

No primeiro eixo, tem-se que a autonomia dos órgãos de controle e o protagonismo recente desses na agenda de acesso à informação (OLIVEIRA JUNIOR, 2024) permite romper a atuação oportunista dos gestores na motivação de ocultar os seus dados, mediando a publicidade dessas informações de forma qualificada e relacionada a lógica das políticas públicas, instrumentalizando assim a participação social de qualidade.

A promoção do acesso à informação necessita de supervisão, de uma ação especializada para que essa se dê a contento, pois na complexa gestão pública do Século XXI, imerso no mundo de redes sociais e de desinformação, a forma dos governos disponibilizarem suas informações, se bem-feita, é fonte de utilidade pública, de confiança e ainda, de estímulo a uma participação social e colaborativa. Mas, se malfeita, consequências desastrosas surgem no horizonte, com sinais trocados e confusão interpretativa. 

Quando a Controladoria-Geral da União (CGU), por exemplo, assume para si a gestão do Portal da Transparência e das normas de transparência ativa, quando acompanha as atividades da Lei de Acesso à Informação, o enforcement do órgão de controle, como instância especializada e de supervisão, garante qualidade na cultura e na prática da ideia de acesso à informação, o que tem relação direta com os aspectos políticos das capacidades estatais, de expansão dos canais de interlocução e negociação com atores sociais, sendo a transparência condição necessária, mas não suficiente, para isso acontecer.

O segundo eixo se refere ao fortalecimento de capacidades estatais em accountability dos gestores, de forma emancipatória. As capacidades da burocracia passam também pela forma como essa constrói salvaguardas diante dos riscos, como ela presta contas e garante o sucesso das iniciativas, e ainda, como se corrige de forma autônoma, um universo que dialoga com o conceito de accountability, na ideia da transparência das decisões, justificação explícita desses atos e a existência de sanções no caso de rompimento dos acordos (SCHEDLER, 1999).

Braga (2020) traz o conceito de “autonomia emancipatória”, no qual ações de controle devem prever a necessidade de adaptação como chave da eficiência, estimulando o amadurecimento das capacidades do gestor, utilizando-se na construção de soluções, em especial nos chamados wicked problems, mecanismos de incentivos e de valorização da inovação na construção de salvaguardas, valorizando a dimensão da construção de soluções viáveis, preventivas e customizadas, rompendo o paradigma da primazia dos problemas.

O foco migra de detectar problemas e propor a correção pontual, para enxergar de forma autônoma a complexidade das dificuldades da gestão, em uma visão sistêmica, da política pública, tendo o cidadão na equação, e assim trabalhar soluções amplas e perenes, que fortaleçam a governança do gestor, propiciando aprendizado, um caráter preventivo e uma herança concreta.

Ao contribuir com a disseminação qualificada de informações sobre a gestão pública, mirando no cidadão em suas diversas matizes, como receptor; e ainda, ao fazer com que a atividade de controle funcione não apenas como detector de problemas, mas como articulador de soluções que fortaleçam a gestão pública de forma não onerosa, tem-se assim dois eixos essenciais para o debate da questão das contribuições do controle governamental no fortalecimento das capacidades estatais.

E para isso, a função controle precisa ser percebida no seu papel de (re)construção, de aprimoramento da gestão, e também de geradora de confiança, e os eixos aqui apresentados podem ser bons inícios desse debate que se faz necessário, em especial após essa década na qual a função controle viveu grandes mudanças, em meio a batalhas campais que a colocaram no centro do debate (VIEGAS et al., 2024).

Referências:

VIEGAS, Rafael Rodrigues; ABRUCIO, Fernando Luiz; MONGELÓS, Silvia Avelina Arias; DE LIMA, Débora Dossiatti. A batalha entre controle e políticas públicas: decifrando a paralisia decisória na administração pública brasileira. São Paulo: Amanuense, 2024.

BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. Vale quanto pesa: um estudo sobre os impactos do controle na gestão. Belo Horizonte: Editora Forum, 2020.

CALIXTO, Clarice. O Direito Público não pode atrapalhar: reformulando a gestão pública no Brasil, 2024. JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/advogadas-publicas-em-debate/o-direito-publico-nao-pode-atrapalhar-reformulando-a-gestao-publica-no-brasil. Acesso em: 04 dez. 2024.

GOMIDE, Alexandre de Avila; PIRES, Roberto Rocha C. Análise comparativa: arranjos de implementação e resultados de Políticas Públicas. In: GOMIDE, Alexandre de Avila; PIRES, Roberto Rocha C. Capacidades estatais e democracia: arranjos institucionais de Políticas Públicas. Brasília: Ipea, 2014, p. 351-379.

NUNES, Edson. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. -3. Ed. –Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Brasília, DF: ENAP, 2003.

OLIVEIRA JÚNIOR, Temístocles Murilo de. 20 Anos do Portal da Transparência: as marcas da dinâmica política na trajetória de um marco anticorrupção, 2024. Blog Gestão, Política & Sociedade (FGV EAESP). Disponível em: https://periodicos.fgv.br/cgpc/announcement/view/353 . Acesso em: 04 dez. 2024.

RAMOS, Conrado. Entrevista do Secretário-geral do Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad). Newsletter “Por dentro da Máquina” (JOTA).  Edição de 3/12/2024.

SCHEDLER, Andreas. Conceptualizing accountability. In: Schedler, Andreas; Diamond, L.; Plattner, M. The Self-Restraining State: Power and accountability in New Democracies. Lynne Rienner Publisher, 1999. P. 13-27.