Miguel Viegas, Jornal i online

O problema é que este acordo EU-Mercosul é profundamente assimétrico, sacrificando a agricultura europeia no altar do livre comércio internacional. Nem que para isso tenham de ser repudiadas todas as orientações políticas e técnicas em matéria de luta contra as alterações climáticas.

A Comissão Europeia tem vindo a negociar há mais de vinte anos um acordo comercial com o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, os países do chamado Mercosul. Em junho de 2018 foi adotado um acordo de princípio, mas até à data o tratado não foi ratificado pelos 27 estados-membros. A eleição de Lula relançou o processo em 2022 e presentemente, a União Europeia parece determinada a assinar o acordo até ao final do ano. O problema é que este acordo EU-Mercosul é profundamente assimétrico, sacrificando a agricultura europeia no altar do livre comércio internacional. Nem que para isso tenham de ser repudiadas todas as orientações políticas e técnicas em matéria de luta contra as alterações climáticas.

O tratado EU-Mercosul, na atual versão, representa o maior tratado de comércio livre jamais celebrado pela UE em termos de população envolvida (780 milhões de pessoas) e de volumes de comércio (entre 40 e 45 mil milhões de euros de importações e exportações). O acordo tem sido criticado por duas ordens de razões. Em primeiro lugar é profundamente assimétrico nos seus impactos. Prevê a entrada livre ou com taxas reduzidas de enormes contingentes de matérias-primas alimentares, com destaque para o milho, arroz, e carnes de suíno, bovino e aves. Em contrapartida, abre o mercado sul-americano aos produtos das principais indústrias europeias, com os automóveis à cabeça, mas também a indústria farmacêutica. Prevê igualmente um acesso facilitado aos mercados públicos para as grandes multinacionais (Veolia, Suez e outras).

A segunda ordem de razão está relacionada com a incoerência do acordo e a sua incapacidade em garantir um mínimo de reciprocidade. Para além dos perigos económicos para os sectores sacrificados, este novo acordo é emblemático da dificuldade europeia em impor cláusulas e medidas de reciprocidade, e também da sua dificuldade em manter uma política ambiental coerente. Embora a UE reivindique justamente a sua vinculação aos Acordos de Paris, permite, na prática com este acordo, que os fabricantes europeus continuem a produzir veículos com motor de combustão que a UE proibirá no seu solo, para os exportar para o Mercosul. Alem disso, a UE concorda, de forma um pouco cínica em importar carne produzida com grandes quantidades de emissões de GEE, mas que não serão registadas no contador europeu. Ao mesmo tempo que prescreve um vasto conjunto de normas ambientais aos agricultores europeus, procurando assim garantir a sustentabilidade do setor, promove a importação massiva de produtos oriundo de países onde as práticas agrícolas são das mais intensivas do mundo!

A Comissão Europeia procura passar a ideia de reciprocidade que, em teoria, impõe aos produtores do Mercosul os mesmos padrões sociais e ambientais. Todavia, este imperativo não tem condições para ser cumprido no Brasil, onde a fileira não está organizada para permitir a rastreabilidade por cabeça, o que torna difícil, senão impossível, saber com certeza a composição dos alimentos, a eventual incorporação de fatores de crescimento (proibidos na EU) e os tratamentos realizados durante a vida de um animal destinado à exportação.

A eventual assinatura do acordo entre a União Europeia e os países do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia), na cimeira do Mercosul que se realiza de 5 a 7 de dezembro, não implica a sua entrada imediata em vigor. Outras etapas são necessárias, o que poderá levar meses. O acordo, na sua atual versão, é rotulado como de “nova geração” e considerado de natureza “mista”, segundo o jargão da Comissão Europeia. Nesta medida requer unanimidade no seio da União Europeia. Para resolver um anunciado impasse, com a discórdia francesa, a Comissão Europeia poderá separar a parte comercial do acordo, que requer apenas uma maioria qualificada no conselho (55 % dos Estados-Membros representando, no mínimo, 65 % da população total da EU). Veremos os desenvolvimentos, mas em todo o caso, vale a pena perguntar o que faz correr a Comissão Europeia atrás deste acordo…