Rute Serra, Expresso online
As recusas de visto pelo Tribunal de Contas – algo que tem sido comum – revelam, por si só, as vulnerabilidades de Portugal no que toca à prevenção de irregularidades. Motivos como contratações diretas sem justificação, ausência de concorrência, falta de documentação, superfaturamento e falhas na definição de objetivos contratuais apontam para práticas que, quando não fiscalizadas previamente, podem facilmente escalar para esquemas fraudulentos ou má gestão dos recursos públicos
Recentemente, o governo português avançou com uma proposta de lei que pretende alterar a forma como os contratos públicos, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), passarão a ser avaliados e fiscalizados pelo Tribunal de Contas (TdC). Uma das mudanças mais significativas diz respeito à flexibilização do mecanismo de visto prévio. Na sua essência, e considerando o contexto nacional, o visto prévio é uma barreira de proteção, uma última linha de defesa que visa garantir que contratos públicos sejam firmados dentro da legalidade, razoabilidade e necessidade, i.e., previne que dinheiros públicos sejam mal utilizados.
Esta decisão suscita, portanto, uma questão fundamental: está Portugal preparado para caminhar sem a fiscalização preventiva em contratos de valor elevado, ou estamos a abrir portas para uma gestão pública vulnerável à corrupção?
As alterações legislativas que se pretendem introduzir visam modernizar e desburocratizar o regime de contratação pública, procurando acautelar o afastamento do tradicional visto prévio através da denominada “fiscalização preventiva especial”. Sim, há mérito nessa intenção. No papel, a medida parece focada em acelerar processos, em adaptar a contratação pública a um mundo onde a velocidade e a flexibilidade são essenciais, nomeadamente, para enfrentar crises pontuais e inesperadas.
No entanto, a história ensina-nos que a eliminação de controlos, quando não é acompanhada por alternativas eficazes, pode constituir um convite aberto a práticas menos transparentes. Esta proposta, apresenta, portanto, um dilema sério: ao flexibilizar o visto prévio, corre-se o risco de enfraquecer um dos mecanismos mais importantes de controlo da gestão pública. O Tribunal de Contas desempenha um papel vital na fiscalização da legalidade e da transparência, nos contratos públicos. O controlo ex-ante que realiza, tem tido duas virtudes essenciais: funciona como uma rede de segurança contra práticas fraudulentas e incrementa, indiretamente, a confiança da sociedade nas instituições públicas.
A flexibilização do visto prévio pode, eventualmente, fazer sentido em países onde os sistemas de monitorização e transparência são avançados e confiáveis. É o caso da Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Países Baixos, Noruega e Suécia, geografias que estão, porém, além do nosso país, no que concerne a políticas de integridade e robustez dos controlos.
As recusas de visto pelo Tribunal de Contas — algo que tem sido comum — revelam, por si só, as vulnerabilidades de Portugal no que toca à prevenção de irregularidades. Motivos como contratações diretas sem justificação, ausência de concorrência, falta de documentação, superfaturamento e falhas na definição de objetivos contratuais apontam para práticas que, quando não fiscalizadas previamente, podem facilmente escalar para esquemas fraudulentos ou má gestão dos recursos públicos.
Deste modo, a medida anunciada, desacompanhada do fortalecimento dos controlos internos, da utilização de plataformas digitais de monitorização contínua ou do incremento dos recursos para realização de controlo ex-post representa uma potencial ameaça, com consequências no aumento da corrupção, no desperdício de recursos e nas garantias de transparência.
A utilização deste expediente para evitar o crivo do Tribunal de Contas tem vindo, nos últimos anos, a tornar-se um recurso tentador. Recordamo-nos dos exemplos de contratos celebrados durante a pandemia, ao abrigo de medidas de exceção. Por essa altura, e considerando as irregularidades detetadas, o TdC recomendou a conceção de um regime único de contratação pública emergencial adaptável a situações de exceção, o qual continua, contudo, sem ver a luz do dia.
Com efeito, sem um plano de ação sólido e investimentos estruturais que garantam uma transição segura, percorrer este caminho afigura-se-nos arriscado. Se pudermos contar com um papel mais ativo no que tange ao escrutínio dos contratos públicos, por parte da sociedade civil, dos órgãos de fiscalização e da comunicação social, talvez se mitigue o risco inerente. Para tal, precisamos de verdadeira política de dados abertos, de modo a exercermos o devido controlo social que compense, eventualmente, a ausência, ainda que pontual, do visto prévio.
Portugal precisa de um modelo de contratação pública moderno, mas que seja também robusto e resistente a práticas abusivas. Afinal, o desenvolvimento de um país não se faz apenas com rapidez e eficiência; faz-se, sobretudo, com transparência e integridade.