Maria Natália Gonçalves, Jornal i online
São irritantes e inaceitáveis as insinuações dos que apresentam o cenário dos incêndios como uma inevitabilidade a que devemos habituar-nos sempre que ocorram condições atmosféricas favoráveis a tal
No passado 16 de setembro, pela manhã, verifiquei que os níveis de humidade da minha urban jungle estavam anormalmente baixos. 20%, num ambiente cuja humidade geralmente oscila entre os 60 e os 80%. Enquanto confirmava não se tratar de uma avaria no higrómetro, veio à minha memória o alerta de risco extremo de incêndio difundido na véspera para as 72h seguintes, mas estava longe de pensar que a mensagem chegada ao telemóvel fosse a profecia do horrendo espetáculo a que viria a assistir.
Não sou especialista em incêndios, não tenho ligação política a qualquer dos municípios atingidos, nem aos respetivos serviços de proteção civil. Também não nutro qualquer tipo de interesse económico que possa beneficiar dos incêndios. As considerações que aqui deixo são apenas de alguém que sentiu uma imensa tristeza pelo sofrimento de todos os que de perto tiveram que lidar com os fogos e uma incompreensão revoltante pela facilidade com que há décadas reincidimos nos mesmos erros e narrativas.
Não é necessário ser-se douto no assunto para chegarmos a duas constatações. Primeira, o problema é suficientemente complexo para ser reduzido a um ou dois tópicos como alguns instruídos na matéria procuram simplificar nos seus fastidiosos comentários televisivos. Segunda, são irritantes e inaceitáveis as insinuações dos que apresentam o cenário dos incêndios como uma inevitabilidade a que devemos habituar-nos sempre que ocorram condições atmosféricas favoráveis a tal.
Não tenho soluções mágicas, mas recuso-me a conformar-me com a aridez dos relatórios pós-rescaldo, demasiado focados no descarte de responsabilidades ou com a criação de comissões técnicas ad hoc que num tom messiânico reclamam que desviemos os nossos olhos para um futuro onde tudo será menos infernal.
Talvez um ponto de partida fosse começar pelo básico e reconhecer a importância do bom senso que segundo o dicionário de língua portuguesa significa: “critério são, faculdade de bem ajuizar nas circunstâncias comuns da vida”. Ora, nos últimos dias vi muito pouco desta virtude…
Façamos a reconstituição da história. Tudo começou com os alertas do fim de semana, seguramente bem-intencionados, mas propagandeados de tal forma que poderão ter funcionado como gatilho na mente de incendiários. Aqui incluo os pirómanos, mas também os criminosos que, não sofrendo de patologia do foro mental, se supõe estarem ao serviço dos interesses económicos ligados à indústria madeireira, da produção de celulose, dos painéis fotovoltaicos ou da exploração de biomassa.
Segundo a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais, em 2023, 31% dos incêndios em Portugal foram causados por incendiarismo. Assim sendo, aconselhariam os números, mas ditaria principalmente o bom senso ser de ajuizar que a sinalização da oportunidade de fogo bem-sucedido intensificasse a apetência dos muitos que das chamas retiram prazer ou outro tipo de benefício.
Mas a falta de bom senso não fica por aqui. Pasmei quando vi políticos da oposição a cavalgar levianamente em cima dos acontecimentos, qual marionetas em ridícula cacofonia ao serviço dos umbigos partidários, como se não lhes coubesse considerável grau de responsabilidade.
E a comunicação social? Também aqui o bom senso parece não ter prevalecido. A exposição excessiva, contínua e desnecessária dos telespectadores a cenários de fogo e a banalização da angústia dos que se encontravam no terreno, apenas mostra que as nossas estações televisivas, mais que prestar o bom serviço público de informar os factos com discernimento e objetividade, estão dominadas pelo desejo desenfreado em elevar os níveis das audiências, explorando o sentimento de autocomiseração tão típico da cultura nacional, seguido da exibição de lufadas de generosidade em sublimação da nobreza coletiva.
Finalmente, não posso deixar de assinalar a falta de bom senso individual e das entidades públicas responsáveis pela concessão de licenças de habitação e de funcionamento de empresas em áreas geográficas cujas estatísticas as colocam como zonas de elevada probabilidade de incêndio florestal.
Feita esta reflexão, a perceção com que fico é que, de um ou outro modo, os incêndios florestais servem a todos nós que, paradoxalmente, enquanto sociedade também somos os que mais perdemos. Que os 483 milhões de euros pagos pelos nossos impostos para custear os incêndios em 2023, sejam suficientes para nos mobilizar no sentido de exigir um basta e um uso mais eficiente dos nossos recursos.
Entretanto, quando voltar a receber uma SMS com alerta de risco extremo de incêndio, espero não ter um déjà-vu e pensar: Amanhã é um bom dia para atear um fogo!