Miguel Viegas, Jornal i online
Ainda há muito trabalho pela frente se quisermos uma tributação mais justa e eficiente
A globalização social e económica, o domínio crescente das empresas multinacionais e a digitalização da economia tem vindo a colocar na ordem do dia a necessidade de um novo modelo tributário que permita combater a fraude e evasão fiscal e inverter uma tendência de perda de capacidade dos estados em assegurar as receitas necessárias para financiar o estado social que tanto apreciamos, mas igualmente garantir uma resposta aos desafios do presente, designadamente em matéria climática. O conceito de Relatório País-por-País (“Country-by-country report”, CbCR) surgiu como resposta concertada dos países da OCDE e da União Europeia para expor e limitar o chamado “planeamento fiscal agressivo” usado pelas empresas multinacionais para concentrar lucros de forma artificial nos territórios de baixa fiscalidade. Os primeiros CbCR remontam a 2016. Os últimos, referentes a 2021 mostram-nos que ainda há muito trabalho pela frente se quisermos uma tributação mais justa e eficiente.
A Diretiva 2016/881/UE do Conselho exige, desde 2017, que as Empresas Multinacionais localizados na UE ou com operações na UE, com um total de receitas consolidadas igual ou superior a 750 000 000 EUR, apresentem um relatório com um conjunto de informações desagregadas por países (lucros, impostos pagos, número de trabalhadores, ativos…). Esta obrigação decorre do Plano de Ação da OCDE sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (BEPS), que visa combater as estratégias de evasão fiscal. O relatório “país por país” deve ser apresentado na jurisdição onde a empresa mãe é residente.
O relatório país-por-pais tornou-se uma ferramenta fundamental na luta global contra a evasão fiscal e a transferência de lucros e um exemplo de cooperação entre estados soberanos. O seu desenvolvimento e refinamento contínuos refletem a natureza em evolução da tributação internacional e o compromisso dos governos em garantir um campo de jogo justo e equitativo para as empresas. Desde sua criação, a OCDE e a UE têm estado ativamente envolvidas na monitorização da implementação do CbCR, e na identificação de potenciais melhorias. A divulgação pública destes relatórios ainda não é consensual, o que não impediu países como os Estados Unidos de dar passos nesta direção.
Com efeito e honra lhe seja dada, a autoridade tributária dos Estados Unidos tem divulgado desde 2016 todos os relatórios por países das empresas multinacionais lá sediadas. A análise destes relatórios permite identificar onde as empresas declaram os seus lucros, onde estão localizados os seus ativos e quantos trabalhadores existem ao seu serviço e cada jurisdição onde opera. Olhando para estes dados, conseguimos identificar práticas de planeamento fiscal agressivo através das quais as empresas multinacionais deslocalizam de forma artificial lucros para territórios onde as taxas de imposto são reduzidas.
A Tabela 1 mostra por ordem decrescente as jurisdições onde as multinacionais norte-americanas declararam os seus lucros em 2021 (últimos dados divulgados). A jurisdição campeã é a Irlanda conhecida pela forma generosa com que acolhe as multinacionais do mundo inteiro. Não por caso, a taxa de imposto, não sendo das mais baixa, não deixa de ser bastante “competitiva”. Ainda a propósito de taxas vejam-se os casos de Gibraltar, Ilhas Caimão e Porto Rico, todos no top10, onde os lucros quase não são tributados. Numa outra perspetiva, podemos analisar a produtividade do trabalho obtida dividindo o lucro pelo número de trabalhadores numa dada jurisdição. Olhando para os números somos levados a querer que a produtividade dos trabalhadores em Gibraltar é 5190 vezes superior a um trabalhador canadiano!? Claro que em economia, não há milagres. A realidade é que muitas empresas multinacional norte-americanas drenam de forma puramente artificial os seus lucros para aquele território, escapando assim ao pagamento de impostos caso estes lucros fossem declarados no local onde são gerados.
Apesar dos CbCR existirem desde 2017, não parece que a situação se tenha alterado. O “planeamento fiscal agressivo”, expressão benévola usada para designar a elisão, quando não a própria fraude fiscal, continua a ser um comportamento padrão das grandes empresas multinacionais. Contudo, temos hoje um quadro mais transparente que nos permite identificar estas estratégias fiscais. Cabe agora às autoridades fazerem o seu papel, para garantir uma fiscalidade mais justa e à altura dos grandes desafios do presente.
Tabela 1: Dados sobre os CbCR publicados nos Estados Unidos | |||
Países | Lucros declarados | Taxa de imposto | Produtividade do trabalho |
Irlanda | $ 129 235 413 127,75 | 11,14% | $ 677 228,51 |
Singapura | $ 85 281 278 051,83 | 5,30% | $ 469 028,72 |
Gibraltar | $ 78 413 847 221,00 | 0,02% | $ 202 097 544,38 |
Reino Unido | $ 58 740 069 943,83 | 23,09% | $ 47 281,26 |
China | $ 42 910 993 596,81 | 22,52% | $ 30 148,21 |
Suíça | $ 42 696 048 414,19 | 11,28% | $ 496 689,24 |
Canada | $ 39 880 148 915,82 | 21,28% | $ 38 936,86 |
Ilhas Caimão | $ 38 699 980 176,36 | 0,17% | $ 25 716 297,38 |
Porto Rico | $ 31 804 588 615,10 | 1,94% | $ 367 287,17 |
Hong Kong | $ 27 863 111 954,97 | 9,75% | $ 314 463,91 |
Fonte: Internal Revenue Service of USA |