José António Moreira, Expresso online
“Onde está então a desigualdade, se à medida em que se sobe nos escalões de rendimento o efeito percentual da redução da taxa no escalão inferior é cada vez menor?! Onde foi o autor do texto buscar essa ideia do aumento da desigualdade?!”
Na informação escrita, o título da notícia ou da crónica sempre foi elemento fundamental, para atrair a atenção do leitor e transmitir de modo sucinto a essência do texto. De modo muito particular nos tempos que correm, em que, por falta de tempo para digerir a quantidade de informação que constantemente é tornada disponível, o leitor tende a ficar-se pela leitura do mesmo. Pontualmente, lerá a síntese, quando o título lhe desperta a curiosidade, mas só muito raramente se dá ao trabalho de ler o texto integral. Quando o faz, não raras vezes descobre que o título não corresponde ao conteúdo. Descuido de quem escreve?! Exagero na procura da atenção do leitor?! Influenciar a perceção do “leitor de títulos” num particular sentido?!
O jornal Público, na sua edição de 29 de abril, titulava na primeira página “Novo corte de IRS arrisca-se a aumentar outra vez a desigualdade” (outras publicações adotaram similar título). O jornalista, com base em dois estudos relativos ao desagravamento do IRS constante do OGE de 2024, um dos quais do Banco de Portugal (BdP), extrapola potenciais consequências na desigualdade resultantes do desagravamento fiscal que atualmente se discute no Parlamento. O título que escolheu desperta efetivamente a curiosidade. Quem é insensível a questões de desigualdade?! Quem não grita de imediato, mesmo que mentalmente, um qualquer impropério dirigido aos “sacanas do Governo que aproveitam para beneficiar os ricos, o grande capital”?!
Quem lê a peça, que navega entre esse suposto aumento da desigualdade e comparações da carga tributária nacional sobre o trabalho com os países pertencentes à Zona Euro, fica confuso e tem dificuldade em perceber onde reside aquele aumento da desigualdade.
Primeiro, porque o texto mostra, baseado no estudo do BdP, que a tributação média portuguesa para salários brutos mensais até cerca de 3.000 euros (duas vezes e meia o salário médio nacional) tende a ser inferior à da Zona Euro. A partir daí, por efeito da elevada progressividade do IRS português, essa tributação tende a ser mais elevada em Portugal. Ou seja, quem aufere um salário mensal superior àquele valor tende a ser mais tributado em Portugal do que a média dos seus concidadãos europeus. Segundo, porque ao ler a parte inicial do texto verifica que a tomada em consideração da mais simples das aritméticas teria evitado criar um título passível de ser considerado exageradamente “atrativo”, com sentido bem diferente do estudo do BdP, “Caraterização e efeitos redistributivos do IRS em Portugal”.
O IRS é um imposto progressivo, em que o rendimento do contribuinte é decomposto em escalões e cada uma destes é tributado a uma taxa específica e crescente. Suponha-se que o primeiro escalão corresponde a um rendimento anual até 7.000 euros em que os contribuintes não pagam imposto; o segundo, a um rendimento anual entre 7.000 e 17.000 euros, e que a taxa deste escalão foi reduzida em 5 pontos percentuais. Quem tiver um rendimento no limite superior deste intervalo verá o seu imposto diminuir de 500 euros, ou seja, aproveitará na totalidade os 5% da redução. Dada a estrutura do imposto, os contribuintes cujo rendimento se situe em escalões superiores irão beneficiar da redução fiscal – pois os primeiros 10.000 euros não isentos desse rendimento serão tributados à nova taxa – mas, para quem tenha um rendimento de 50.000 euros, por exemplo, isso só representará uma redução da respetiva carga fiscal em 1%. Onde está então a desigualdade, se à medida em que se sobe nos escalões de rendimento o efeito percentual da redução da taxa no escalão inferior é cada vez menor?! Onde foi o autor do texto buscar essa ideia do aumento da desigualdade?!
Ao referido estudo do BdP, cujos autores optaram por comparar o efeito percentual da baixa das taxas de IRS no OGE de 2024 dos vinte por cento de contribuintes com maiores rendimentos (poupança de cerca de 2%) relativamente aos vinte por cento com rendimentos mais baixos (poupança de cerca de 0,5%). Este resultado comparativo, que é o alicerce do título do texto, afinal resulta do facto de parte dos contribuintes com rendimentos mais baixos, incluídos no primeiro escalão, não pagar IRS ou pagar pouco, pelo que não beneficia total ou parcialmente da diminuição da taxa de imposto. Portanto, o que está em causa nestes números, quando calculados do modo que o foram, não é mais do que um efeito aritmético, automático, independente da vontade de qualquer decisor político que decida baixar a tributação em IRS.
Será que se está em presença de um aumento da desigualdade na tributação?! É-se de opinião que não. Obviamente, o que norteará a resposta a esta questão é considerar-se, ou não, que a tributação em IRS tem de ser o (em vez de mais um) instrumento de política pública que deve reduzir diferenças de níveis de rendimento disponível entre cidadãos. A olhar-se para tal política desta perspetiva extrema – e parece ter sido essa a linha de pensamento subjacente ao referido título –, no limite nunca se vai poder mexer na tributação enquanto houver um único cidadão cujo baixo nível de rendimento não lhe permita beneficiar de uma baixa da taxa de imposto.
Todos queremos uma sociedade mais justa, menos desigual. Para isso e sem prejuízo de que o IRS possa ter algum papel numa política de redistribuição de rendimento, a intervenção das políticas públicas deveria concretizar-se preponderantemente a montante – por exemplo, ao nível da educação e da formação pessoal dos cidadãos, ao nível do fomento do investimento produtivo e da criação de riqueza – e não atuar preponderantemente a jusante, na tributação, com a intenção de eliminar as desigualdades de rendimentos que aí desaguam. A não ser assim, ao depositar-se na política fiscal a responsabilidade da obtenção de uma sociedade mais igual, corre-se o risco de criar efeitos perversos e iníquos que, no limite, poderão condicionar a própria arrecadação de receita fiscal, por via do desincentivo à geração de rendimento e o recurso à evasão fiscal. Pense-se, por exemplo, que incentivo terá alguém para procurar gerar mais rendimento se, no montante que excede 80.000 (250.000) euros anuais, essa parcela é tributada, em IRS, à taxa de 50,5% (53%)?!
Em nome da igualdade não se pode liquidar a equidade.