Marcus Braga, Jornal i online

A adjetivação de alguém como bufo ou chibo sempre teve uma conotação negativa

Até ao dia 25 de abril de 1974, se alguém denunciasse uma infração estava, rapidamente, associado ao regime autoritário-ditatorial de inspiração fascista designado por Estado Novo.

Este surgiu na sequência do golpe militar de 28 de maio de 1926, que pôs fim à República democrática e parlamentarista portuguesa e instaurou em Portugal uma ditadura militar culminada pela eleição de Óscar Carmona como Presidente em 1928.

Durante o seu mandato presidencial, que se intitulou por Ditadura Nacional, foi elaborada a Constituição Política da República Portuguesa de 1933. De acordo com o seu artigo 8.º constituíam direitos e garantias individuais dos cidadãos portugueses o direito ao bom nome e reputação (a adjetivação de alguém como bufo ou chibo sempre teve uma conotação negativa) e a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma.

O mesmo artigo referia, ainda, que as leis especiais regulariam o exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação devendo, quanto à primeira, impedir-se, preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social por forma a salvaguardar a integridade moral dos cidadãos, a quem ficaria assegurado o direito de fazer inserir gratuitamente a retificação ou a defesa na publicação periódica em que fossem injuriados ou infamados, sem prejuízo de qualquer outra responsabilidade ou procedimento determinado na lei.

Esclareça-se ainda que, segundo o artigo 20.º da Constituição, a opinião pública constituía um elemento fundamental da política e administração do país, impendendo sobre o Estado a sua defesa face a todos os fatores que a desequilibrassem através de atos praticados contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum. Na letra da lei (Decreto n.º 22:241), a imprensa exercia uma função de caráter público, por virtude da qual não poderia recusar, em assuntos de interesse nacional, a inserção de notas oficiosas de dimensões comuns que lhe fossem enviadas pelo Governo.

Crê-se que nos dias de hoje, o termo opinião pública é usado de forma abusiva em diversas ocasiões, em diferentes contextos, para se referir, apenas e tão só, às opiniões (perceções) de comentadores ou dos intitulados especialistas, sem qualquer suporte em estudos de opinião (os que são concebidos com metodologia). Expressa-se, aqui, a liberdade de opinião (pessoal) e pensamento (crítico). Mas, voltemos aos factos históricos.

No Estado Novo existia a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), uma polícia política, uma versão renovada da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que mais tarde foi reconvertida na Direcção-Geral de Segurança (DGS). O objetivo da PIDE era o de censurar e controlar tanto a oposição como a vox pop (voz do povo) de descontentamento, em Portugal e nas colónias, ou seja, acabava-se por restringir a referida liberdade de expressão do pensamento. Difundiram-se, assim, os afamados bufos ou chibos, informadores, mais ou menos considerados espiões dos bons costumes político-sociais, ao serviço da PIDE-DGS.

Com a Revolução de 25 de Abril, também conhecida como a Revolução dos Cravos, a Revolução de Abril ou apenas por 25 de Abril, que ocorreu em 1974, resultante do movimento militar, político e social que se assistiu, foi deposto o regime ditatorial do Estado Novo e iniciou-se um processo que viria a gerar a implantação de um regime democrático e a entrada em vigor de uma nova Constituição, a de 25 de abril de 1976.

Desta feita, de acordo com a nova Constituição, a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa[1].

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação[2].

De igual modo, todos passam a ter o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, tal como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura[3].

A liberdade de imprensa passou a garantir: a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como, a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respetivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem natureza doutrinária ou confessional; o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à proteção da independência e do sigilo profissionais, bem como o direito de elegerem conselhos de redação; o direito de fundação de jornais e de quaisquer outras publicações, independentemente de autorização administrativa, caução ou habilitação prévias[4].

O Estado passou a assegurar a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico, impondo o princípio da especialidade das empresas titulares de órgãos de informação geral, tratando-as e apoiando-as de forma não discriminatória e impedindo a sua concentração, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas[5].

Inclusive, a estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do setor público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião[6].

A liberdade de expressão e informação, fortemente correlacionadas, há cinquenta anos que deixaram de ser vistas como algo negativo e sujeito a censura. Contudo, nem sempre o ato de informar, sobretudo por alguém que não seja jornalista, deixou de ser visto como uma prática deselegante, infame, ultrajante, incorreta, errada ou reprovável.

À luz do Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações[7], a denúncia deve ser entendida como o ato de comunicar informações, de forma verbal ou escrita, sobre violações ao direito[8], desde que o denunciante (pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional, independentemente da natureza desta atividade e do setor em que é exercida)[9], esteja de boa-fé, e tenha fundamento sério para crer que as informações são, no momento da denúncia ou da divulgação pública, verdadeiras[10]; e denuncie ou divulgue publicamente a infração, nos termos estabelecidos pelo RGPDI, quanto à precedência entre os meios de denúncia (interna e externa) e divulgação pública[11].

A liberdade de expressão e de informação não deve, porém, legitimar a prática de crimes tais como a injúria, a difamação, a denúncia caluniosa, a devassa da vida privada ou a violação de correspondência ou de telecomunicações, bem como qualquer lesão (infundada) ao bom nome e reputação do(s) denunciado(s). De igual modo, ninguém deve ser vítima de qualquer forma de discriminação, só pelo fato de ser denunciante.

Assim, nos dias de hoje, quem denuncia ou divulga publicamente uma infração, conhecida em contexto profissional (e não por um “profissional de denuncias” político-morais ou “detetives autodidatas”, que não devem ser confundidos com os jornalistas de investigação criminal), pode ser protegido por lei (nos termos do RGPDI)[12], tal como pode apelar à defesa dos seus direitos constitucionais de comunicar ou informar (denunciar) infrações, enquanto cidadão participativo de um Estado de direito democrático (livre).


[1] Cf. artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa (CRP).

[2] Cf. n.º 1 do artigo 26.° da CRP.

[3] Cf. n.os 1 e 2 do artigo 37.° da CRP.

[4] Cf. alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 38.° da CRP.

[5] Cf. n.o 4 do artigo 38.° da CRP.

[6] Cf. n.º 6 do artigo 38.° da CRP.

[7] Estabelecido pela Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, que transpôs a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União.

[8] Vide artigo 5.º, 3), da Diretiva 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro.

[9] Cf. n.º 1 do artigo 5.º do RGPDI.

[10] Cf. n.º 1 do artigo 6.º do RGPDI.

[11] Previstos no artigo 7.º do RGPDI.

[12] Já para não se referir outros diplomas legais, tais como a Lei n.º 19/2008, de 21 de abril, na sua versão em vigor (veja-se o artigo 4.º), a Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, na sua versão em vigor, ou o Código de Processo Penal (veja-se o artigo 242.º).