António João Maia, Jornal i online

O problema da falta de integridade e da corrupção no exercício de funções políticas mina de forma muito grave a relação de confiança que é central no equilíbrio saudável da democracia.

Como referi em reflexão publicada aqui neste mesmo espaço logo no início do ano, na entrada do cinquentenário da revolução, a nossa democracia parece estar a evidenciar sinais de alguma crise de confiança e, por associação, de credibilidade.

A democracia é um modo de organização política que se apresenta sempre em equilíbrio ténue e muito instável, que assenta em pressupostos tão importantes como a liberdade de escolha de todos os cidadãos, a capacidade de perceber e avaliar as diversas propostas sobre a mesa para a gestão do interesse de todos em nome de todos, e, como corolário das condições anteriores, em relações de confiança mútua, sobretudo entre o exercício da ação política e a generalidade dos cidadãos destinatários dessa ação.

Por outras palavras, toda a ação que concretize de forma coerente as propostas escolhidas pela maioria em resultado do ato eleitoral, tenderá a ser lida como um sinal positivo de reforço da confiança, mesmo junto dos grupos sociais que sintam que essa ação não é a mais confortável para os seus interesses – “a política nesta determinada área não nos agrada particularmente, mas reconhecemos coerência na sua execução, na medida em que estava inscrita no programa eleitoral que veio a ser o mais votado, o escolhido pela maioria”.

Se, ao contrário, após o ato eleitoral, os sinais da ação política revelados pelos eleitos divergirem significativamente e sobretudo se contrariarem o programa apresentado e sufragado, a confiança reduz-se – “afinal a política que está a ser desenvolvida não é a que foi proposta no programa eleitoral escolhido pela maioria, sentimos estar a ser enganados”. Estamos, neste caso, num cenário de fraude, de desconformidade de expectativas, e por isso gerador de desconfiança no sistema – “são todos iguais, querem apanhar-se lá, depois fazem como lhes dá mais jeito”.

Claro que na realidade e pela enorme (gigantesca) abrangência de áreas que afeta, o exercício da função política estará sempre algures no meio destes dois limites. O mais provável e razoável é que se concretizem algumas das políticas de acordo com o programa eleitoral escolhido pela maioria – as mais simples e de mais fácil implementação – e outras acabem por ficar incompletas ou mesmo não realizadas – as mais difíceis, por exemplo em termos de custos financeiros, ou que requeiram mais negociação e apoio com as oposições, ou ainda por alteração significativa das circunstâncias, como sucedeu por exemplo com a questão da pandemia do vírus da Condiv-19, de que todos nos recordamos.

Ainda assim, se os sinais de ação e dos atores políticos forem objetivamente claros, no sentido de esforço na procura da concretização adequada ou o mais próximo possível do programado, o cidadão – pelo menos o mais atento e esclarecido – tenderá, no mínimo, a reconhecer esse esforço e manter alguma credibilidade na relação com as lideranças políticas. Os menos atentos e sobretudo os menos preparados ou habilitados para a avaliar estas questões com alguma objetividade e sentido crítico, embarcarão provavelmente na onda da maioria, que afirma que tudo e todos são igualmente menos íntegros e corruptos.

Na tal reflexão do início do ano, apontava alguns sinais de desconformidade entre as expectativas dos cidadãos e a ação da liderança política, com potencial gerador de desconfiança, de afastamento entre os cidadãos e as lideranças políticas.

Indiquei por exemplo: o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, com serviços de urgência frequentemente encerrados e nas longas horas de espera nos hospitais e centros de saúde; a qualidade do ensino, revelada pela redução dos índices médios de desempenho dos alunos, e a que se associou sempre a interminável luta reivindicativa dos professores, com toda a carga de instabilidade que arrasta consigo; a reduzida eficiência da justiça, traduzida nos tempos excessivamente alongados em determinados tipos de procedimentos, na escassez de recursos e em decisões que o cidadão comum tem muita dificuldade em compreender; e, talvez a componente mais grave de todas e mais geradora de desconfiança, os sinais de falta de integridade e transparência na gestão política, associada a suspeitas de conflitos de interesses, fraude e corrupção, e que acabou por conduzir à demissão dos governos da República e da Região Autónoma da Madeira, e a cenários eleitorais que até há cerca de dois meses não estavam minimamente no horizonte de ninguém.

Enfim, uma circunstância estranha e pouco animadora para o futuro, e que, para lá de tudo o mais, no quadro de campanha eleitoral em que já nos encontramos, tem servido para alimentar todo um conjunto de discursos demagógicos (e irrealistas, como é sua característica) que algumas forças políticas estão a utilizar para nos prometer uma realidade nova, uma mão cheia de ilusões.

A questão é que o problema dos sinais de falta de integridade e corrupção associados ao exercício de funções políticas parece ser mesmo uma das maiores preocupações dos portugueses na atualidade, como foi revelado há poucos dias pelo estudo “Vozes de Portugal: a perspetiva do cidadão” realizado pela SEDES, cujos principais resultados foram divulgados por alguma comunicação social.

O problema da falta de integridade e da corrupção no exercício de funções políticas mina de forma muito grave a tal relação de confiança que é central no equilíbrio saudável da democracia.

Os problemas da falta de integridade, dos conflitos de interesses e da falta de transparência no exercício de funções públicas (políticas e administrativas), que se traduzem na fraude e na corrupção, serão provavelmente questões de importância maior que se vão colocar no quadro do próximo governo, seja ele qual for.

A subsistência da democracia como a temos conhecido pode depender das opções tomadas para procurar inverter um conjunto de sinais que a realidade teimosamente nos continua a mostrar.