António João Maia, Expresso online
A ausência de integridade, da fraude e da corrupção é um elemento potencialmente presente a todo tempo em qualquer organização e pode manifestar-se em qualquer função ou nível hierárquico
Nas últimas três semanas quase não se falou de mais nada do que do (no mínimo) polémico beijo do Presidente da Real Federação Espanhola de Futebol a uma das jogadoras da seleção feminina aquando da entrega da taça de campeãs do mundo que tinham acabado de conquistar.
Não pretendo analisar, nem sequer comentar, o facto em concreto, nem as circunstâncias que o possam explicar, até porque não as conheço no seu todo e porque, de facto, não é esse o propósito que me move. De resto, sobre o caso, tanto já se disse e escreveu que provavelmente pouco mais se poderia acrescentar, se tal se justificasse.
O propósito desta reflexão é, a partir dos diversos desenvolvimentos mediáticos que o caso do beijo acabou por ter um pouco por todo o mundo, abordar uma dimensão por vezes menos explorada das situações de ausência de integridade nas organizações, designadamente de fraude e corrupção, e que é a dos impactos reputacionais sobre as próprias organizações e, partindo daí, a importância da adoção efetiva de medidas e cuidados preventivos.
Considero que esta é uma reflexão necessária e importante, sobretudo em Portugal, num momento em que as organizações, públicas e privadas, têm de adotar um conjunto de instrumentos e cuidados promotores da integridade e da prevenção e despiste de riscos de fraude e corrupção, designadamente por via do Regime Geral de Prevenção da Corrupção e da Estratégia Nacional Antifraude.
A questão não é tanto quanto ao facto de as entidades estarem a desenvolver e adotar esses instrumentos, o que parece estar efetivamente a suceder, até porque, de acordo com o Regime Geral de Prevenção da Corrupção, há um conjunto de sanções pecuniárias de valor considerável que podem ser-lhes aplicadas se o não fizerem, ou se o fizerem de modo irregular.
A questão será mais a da efetiva execução das medidas de cuidado que devem estar vertidas em tais instrumentos, como tive oportunidade de referir em crónicas anteriores, como por exemplo em Pode a cultura de uma organização ser um fator preventivo da fraude e da corrupção? ou em Promover a integridade e controlar a corrupção no sector público em Portugal - estado da arte. Nesses textos suscitava precisamente a possibilidade, que continuo a considerar francamente real, de a preocupação maior dos dirigentes e gestores das organizações ser a de promover (por produção própria, como deverá suceder, ou por aquisição no mercado que entretanto se criou para este efeito) os requeridos instrumentos (códigos de ética, planos de prevenção de riscos de fraude e corrupção, canais de denúncia, manuais de boas práticas, programas de formação para a integridade, sistema de controlo interno, entre outros) sobretudo com a preocupação de cumprir rigorosamente os critérios legais, nomeadamente quanto a conteúdos, à sua apresentação às entidades competentes (designadamente às tutelas e ao MENAC - Mecanismo Nacional Anticorrupção), bem como à sua divulgação através dos seus sítios da internet, para escapar à aplicação das sanções que estão previstas, negligenciando ou secundarizando depois a componente da sua divulgação, dinamização e operacionalização interna, por toda a organização, junto de todos os trabalhadores e colaboradores, dimensão crucial para que os cuidados e medidas de prevenção previstas em tais documentos sejam efetivamente postas em prática, pois só desta forma se tornam efetivas.
Se, como presumo, em diversas situações o registo for este, isso significará que na prática a organização e toda a sua atividade permanecerá igualmente desguarnecida quanto aos cuidados sobre os riscos de integridade, fraude e corrupção a que está exposta, precisamente por inoperância das medidas de prevenção previstas nesses instrumentos.
Nestes casos, que traduzem uma certa visão puramente burocrática dos regulamentos e normativos, os dirigentes e gestores revelam um certo grau de desconhecimento ou, pelo menos, de negligência quanto ao problema da ausência de integridade e da fraude e da corrupção e dos seus impactos. Esta visão pode decorrer de diversos fatores, como sejam a perceção de que estes são problemas que só afetam outro tipo de organizações, e traduzem-se por exemplo em afirmações como: “isso só acontece aos outros”; “nesta organização nunca sucederam coisas dessas”; “confio plenamente em todas as pessoas que exercem funções na organização”; ou ainda “a natureza das nossas funções não é suscetível de gerar problemas desses”.
Esta atitude reveladora de alguma negligência misturada com alguns traços de sobranceria, como digo, traduz também algum (muito) desconhecimento sobre as circunstâncias que explicam e podem levar à ocorrência deste tipo de práticas e sobretudo dos seus efeitos, incluindo sobre:
- A própria organização e os que nela exercem funções, desestabilizando o equilíbrio normal das dinâmicas sociais do seu funcionamento. Os trabalhadores, sobretudo os que sejam particularmente mais íntegros, podem revelar incómodo e até desconforto ao tomarem conhecimento de práticas dessa natureza envolvendo colegas, dirigentes ou outros colaboradores, traduzindo esse desconforto por desabafos do género “não me revejo em nada disto”, ou “sinto vergonha por trabalhar numa organização onde estas coisas ocorrem”. E, por via destes efeitos, podem também passar a evidenciar, e a assumir, menores índices de motivação e de disponibilidade para continuarem a envolverem-se com a mesma intensidade no cumprimento das suas tarefas funcionais. Por outro lado, o conhecimento destas situações poderá também suscitar eventuais efeitos de repetição por parte de outros trabalhadores, dirigentes ou colaboradores, nomeadamente por aqueles que tenham também um menor índice intrínseco de integridade, traduzido por exemplo em pensamentos como “se aquele ou aquela praticou este ato em benefício próprio, então eu também posso fazer igual”;
- O mercado ou área administrativa onde a entidade opera, traduzindo-se em sinais de descrédito, redução dos índices de confiança e desvantagens concorrenciais perante parceiros, fornecedores e concorrentes, entre outros stakeholders, com a consequente perda de quota de mercado;
- Os resultados da sua ação ou função, incluindo sobretudo de natureza financeira, que podem reduzir-se muito significativamente também por efeito da quebra da confiança e perda de credibilidade junto dos clientes. São conhecidas inúmeras situações de entidades que, por via de ocorrências de atos de fraude interna praticadas por trabalhadores, dirigentes ou colaboradores, simplesmente desapareceram, com os consequentes impactos sociais sobre todos os que nela exerciam funções, e que, sem qualquer intervenção ou, pelo menos, responsabilidade nos atos, se viram repentinamente sem os seus postos de trabalho e salários, muitas vezes as únicas fontes de rendimento dos seus agregados familiares. O bem conhecido caso da norte americana Enron Corporation é exemplificativo de um processo desta natureza.
A ausência de integridade, da fraude e da corrupção é um elemento potencialmente presente a todo tempo em qualquer organização e pode manifestar-se em qualquer função ou nível hierárquico, bastando para tal que nela se encontre alguém com um perfil de menor integridade intrínseca, ou seja alguém com menos escrúpulos éticos, que percecione estar perante uma boa oportunidade para retirar benefícios em seu favor e que, prevalecendo-se dessa oportunidade, acaba por prejudicar de forma gravosa os propósitos e interesses da organização.
Se facilmente se compreende que pessoas com este perfil possam integrar qualquer organização, então isso significa que os cuidados de prevenção devem existir e estar implementados de uma forma efetiva.
Os instrumentos de cuidado e prevenção devem existir e ser devidamente dinamizados e executados, tendo sobretudo em consideração a natureza do problema, os efeitos que dele podem decorrer e os propósitos de proteção da organização e de tudo o que representa para os que dela dependem (deste ponto de vista, as organizações são unidades muito relevantes na esfera da responsabilidade social).
Regresso ao ponto inicial para referir que por certo foi enorme e longo o esforço de preparação e envolvimento de todas as jogadoras e estruturas de apoio da seleção espanhola de futebol, que tiveram de ultrapassar todas as adversidades com que se cruzaram e bater as adversárias com quem tiveram de jogar, e que só esse contexto de esforço coletivo permitiu o resultado que alcançaram. E no meio de toda essa dinâmica, que perdurou por dezenas de dias e largas centenas de horas, de repente, num breve segundo, um ato menos digno praticado por um único elemento do grupo deitou tudo a perder, secundarizou irremediavelmente todo o significado desse esforço do grupo.
E a meu ver este é o grande problema da fraude e da corrupção. Basta uma pessoa ter uma atuação menos integra para que todo um projeto e o que ele significa, incluindo sobretudo os que neles estejam envolvidos, se desvirtue ou perca sentido. Poucos destroem o esforço de todos. Prevenir adequadamente é necessário.