José António Moreira, Expresso online
A narrativa do Governo refere que não se podem aumentar demasiado os salários sob pena de se alimentarem as tensões inflacionistas. Porém, é ele mesmo que pega em milhares de milhões de euros e atribui subsídios “a torto e a direito”, subsídios para quase tudo
A média estatística proporciona-se, com facilidade, a servir de base a histórias do tipo “nonsense”.
Uma delas, muito popular, é a que toma como contexto a refeição de dois companheiros. Encomendaram um frango assado. Este foi servido quando um dos convivas estava momentaneamente ausente. O outro, não esperou, iniciando a refeição. Quando o primeiro chegou o frango tinha desaparecido, tragado pelo apetite voraz do segundo. Para efeitos estatísticos, em média, cada um dos personagens consumiu meio frango. [Para além de se sentir defraudado, seria maior a irritação do primeiro conviva se soubesse que lhe foi imputado o consumo de parte do frango?]
A média, como medida estatística, apresenta o inconveniente, que a história ilustra, de atribuir a cada elemento da população envolvida a mesma proporção, independentemente do que, no caso, consumiu. É, em termos metafóricos, “o casaco que não serve ao gordo, nem fica bem ao magro”. Por tal motivo, o respetivo uso, diretamente, sem a intermediação de outras medidas estatísticas, é passível de gerar enviesamentos, que podem levar a injustiças, porque, sob o manto de que todos têm igual comportamento, uns “comem muito” e outros “comem pouco ou nada”.
Baixe-se do domínio dos frangos para o do rendimento. As distorções são as mesmas. Por exemplo, segundo a Pordata, em 2020, na administração pública, o salário médio mensal era de 1.168 euros para os homens (1.328 euros para as mulheres). É óbvio que há muitos funcionários que ganham menos do que a média e, claro, muitos que ganham mais. Talvez por isso, o Governo, quando se trata de ajustar salários, no âmbito da sua política de redução administrativa das desigualdades, procura distribuir assimetricamente o que há disponível, atribuindo proporcionalmente mais a quem ganha menos. Significa que tem presente que a média não é medida estatística indicada para ser utilizada diretamente neste tipo de contexto.
Porém, do mesmo modo que as pessoas vão tendo lapsos de memória, cada vez mais notórios à medida que a idade avança, também o Governo parece denotar este tipo de lapsos. É certo que em tais casos fica sempre a dúvida se serão mesmo lapsos de memória – por estar há já muito tempo em funções – ou se é de propósito para defraudar quem trabalha. [Isto é sarcasmo, obviamente.]
Concretize-se. Face a uma taxa de inflação esperada para 2023 de cerca de 6% (B. Portugal), o Governo decidiu que se tinham de ajustar os salários dos trabalhadores. Era esperado. No caso da função pública, a estratégia que delineou e impôs foi a seguinte: como a expetativa para o ano corrente era de um crescimento médio da massa salarial pré-ajustamento de cerca de 3,6%, por via de promoções, ajustamentos salariais e novas contratações, então ao ajustamento salarial para compensação da inflação deduziu esse incremento. Parece ter-se esquecido das distorções que a utilização acrítica da média tem associada. Neste caso, que não é uma mera história “nonsense”, tais distorções ocasionam um grau não despiciendo de injustiça, pela desigualdade de tratamento subjacente. [Leitor, não se esqueça da irritação do conviva que não comeu frango.]
Em simultâneo, na distribuição do montante que havia para ajustamentos, o mesmo Governo já não se esqueceu das limitações inerentes à média e, para o provar, voltou a percentualmente discriminar pela positiva quem ganhava menos.
Até pela inconsistência relativa das soluções adotadas em cada uma das situações referidas, é óbvio que o recurso do Governo à média do crescimento salarial esperado foi um truque para defraudar os funcionários. Fê-lo, a todos.
Aos que viram os seus salários ajustados por razões diversas da inflação, porque se esta não estivesse presente as remunerações teriam aumentado em termos reais. Devido ao referido truque esse aumento desapareceu como ajustamento inflacionário. No caso dos funcionários que não tiveram direito a qualquer promoção o impacto foi ainda pior. No espaço de dois anos, contando o de 2023 e também o “bónus” de 1% que o Governo muito recentemente “ofereceu”, terão o respetivo salário real reduzido em pelo menos 10%, só por via da inflação.
A narrativa do Governo refere que não se podem aumentar demasiado os salários sob pena de se alimentarem as tensões inflacionistas. Porém, é ele mesmo que pega em milhares de milhões de euros e atribui subsídios “a torto e a direito”, subsídios para quase tudo.
Mais um ato de verdadeiro e profissional ilusionismo. Quase tão grande como a perda real de rendimento que desde há muito a classe média paulatinamente vem verificando, é a irritação sentida pelo facto de se estar constantemente a ser defraudado [“comido”] pelo executivo.
PS: Declaração de interesses. O autor é funcionário público, mas nem sequer teve direito a cheirar o frango.