Pedro Moura, Expresso online
O SIGIC é um bom exemplo de uma ideia aparentemente boa. Naturalmente que se querem reduzir as listas de espera cirúrgica. Mas, na prática, o SIGIC tem resultados altamente perversos
Muito se tem falado sobre a Saúde (ou mais propriamente o SNS) em Portugal, ou mais propriamente sobre o seu PDEC (Processo de Degradação em Curso). Há quem culpe a pandemia, o Governo, os Hospitais Privados e as PPP na saúde, os Médicos, e até os próprios utentes do SNS. Eu acho que para além destas ‘entidades com rosto’, se tende a escrutinar pouco os sistemas, a arquitetura de funcionamento dos sistemas, e os impactos que estes têm em fenómenos como desperdício e fraude.
Lembrei-me que havia publicado um artigo em 2014 (!) com o sugestivo título ‘A saudezinha portuguesa’ (Visão, 2014), em que, entre outras reflexões, apontava a mira ao SIGIC (vulgo Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia), nomeadamente ao programa para recuperação das listas de espera cirúrgica.
O SIGIC é um bom exemplo de uma ideia aparentemente boa. Naturalmente que se querem reduzir as listas de espera cirúrgica. Mas, na prática, o SIGIC tem resultados altamente perversos.
Qual é o problema aqui, e porque falo sobre programas de diminuição de listas cirúrgicas num artigo de opinião sobre fraude? Porque, para mim, desbaratar dinheiro público indevidamente também se inclui na categoria de fraude. Permitida, tacitamente aceite por muitos dos envolvidos, mas não deixando de ser apropriação indevida de recursos.
Os profissionais de saúde dos Hospitais Públicos (sobretudo Médicos e Enfermeiros) sabem muito bem o que é o SIGIC, até porque muitos deles têm aqui um excelente (e por vezes imprescindível) complemento aos seus magros salários. Há casos em que profissionais de Saúde recebem mais de SIGIC que de ordenado base.
Na prática as ‘cirurgias SIGIC’ são feitas em horas extraordinárias e são pagas ‘à peça’, ao contrário das cirurgias efetuadas dentro do horário normal de trabalho. Estas cirurgias podem ser feitas em Hospitais Públicos ou em Hospitais Privados.
Os Hospitais têm um indicador de Produtividade Cirúrgica, ou seja, fazem n cirurgias de um dado tipo por dia. O sistema de cirurgia deve (deveria) ser gerido para aumentar este indicador, assegurando a melhor utilização dos recursos disponíveis (materiais e humanos) para a realização do maior número de cirurgias.
O problema é quando o ‘sistema’ está desenhado de forma a não incentivar o indicador de Produtividade Cirúrgica em horário normal, porque todas a cirurgias feitas fora deste horário, ‘em SIGIC’ são pagas à peça, e, pelo que profissionais de saúde me dizem, bem pagas (embora o Estado demore a pagar, pelo menos é ‘garantido’). Ou seja, há um claro incentivo para se realizarem cirurgias SIGIC (muito mais caras, à peça, para o erário público), e um desincentivo para as cirurgias em horário normal (muito mais caras que o suposto, por falta de produtividade). Ou seja, nenhum dos subsistemas funciona realmente como deveria funcionar, e o sistema como um todo é menor que a soma das partes (e bem mais caro).
Acresce a isto que a diferença na Produtividade Cirúrgica em horário normal entre Hospitais Públicos e Hospitais Privados é enorme. Infelizmente não encontrei estatísticas que me permitissem ter uma base sólida para sustentar esta afirmação (quem delas souber, que mas envie), mas as centenas de conversas que tive com profissionais de saúde conhecidos que conhecem bem ambos os universos hospitalares são claras neste facto, chegando-me a indicar rácios de 1 para 3. Ou seja, no mesmo horário fazem-se 3 cirurgias num Hospital Privado enquanto apenas 1 é feita num Hospital Público.
Ao que parece, um Hospital Público a trabalhar em ‘modo SIGIC’ tem um indicador e Produtividade Cirúrgica similar a um Hospital Privado em ‘modo horário normal’.
Isto tem um nome: má gestão. E não tem justificação possível.
Infelizmente em Portugal é fácil viver com o injustificável: basta uma equipa de comunicação (como a do Governo) criar uns soundbytes com que os responsáveis políticos inundam os media, a populaça descarrega alguma bílis nas redes sociais e nos cafés a ver a CMTV, e aquelas que até teriam o conhecimento e a capacidade de melhorar tudo isto arrepiam-se só de pensar em servirem publicamente, encolhem os ombros e passam ao próximo livro, tudo continuando assim bem na terra que a gente tem.
A forma como se desenham e gerem os sistemas é fundamental para a prevenção do desperdício, do abuso e da fraude.
Um sistema como o SIGIC não faz sentido como está desenhado, pois canibaliza o sistema normal de cirurgia, incentivando o fraco desempenho em horário normal e o custo excessivo em horário extraordinário. Porque não pensar-se num modelo misto, em que os profissionais de saúde que trabalham em cirurgia teriam um ordenado base e uma componente salarial indexada a produtividade concreta, acabando com um modelo dicotómico normal / SIGIC? Porque seria muito complicado implementar-se? Porque os próprios profissionais de saúde que trabalham em ‘modo SIGIC’ já não podem passar sem o rendimento extra que daí vem? Porque as administrações hospitalares não sabem ou conseguem gerir os seus hospitais? Pessoalmente não consigo aceitar este tipo de podridões onde temos, portugueses, tanto jeito em nos deixar cair.
E já agora, seria espetacular a existência e publicação de informação concreta e quantitativa sobre os indicadores que refiro neste artigo e outros (produtividade cirúrgica comparada, custos por cirurgia comparada, etc, etc). Alguém que experimente googlar ‘indicadores SNS’ e seguir alguns links, e pergunte-se como pode um cidadão normal conseguir informar-se sobre este tema.