Jorge Fonseca de Almeida, Dinheiro Vivo
Uma onda de indignação vinda da banda liberal ergueu-se com a proposta de introduzir em Portugal alguma legislação sobre casas devolutas semelhante à que existe no país mais liberal da Europa: a Holanda. Bradam os liberais que o aluguer compulsivo põe em causa o sacrossanto direito de propriedade. Temem o Comunismo.
Simultaneamente os mesmos indivíduos saltaram das cadeiras e condenaram em uníssono uma multinacional da edição que vai publicar a obra de um conhecido autor de livros infantis expurgada de algumas frases infelizes, racistas e discriminatórias. Caí o Carmo e a Trindade. Comunismo asseguram.
Contudo, estes liberais atacam, sem aparentemente o perceberem, o sacrossanto direito à propriedade que tanto gostam de preservar nos bens imóveis.
É que a propriedade intelectual sobre os livros do dito autor pertencem à referida editora que, liberalmente, deve poder dispor da obra a seu belo prazer. É, mesmo, exercendo esse direito sobre uma propriedade que é sua que pode legalmente alterar os textos. Que limites defendem então os liberais ao uso irrestrito da propriedade pela editora? Aparentemente quase todos, já que esta não deveria na opinião dos nossos liberais alterar nem uma vírgula. Será tal posição pior que o Comunismo?
Querem impedir alguém, neste caso uma honrada editora, de alterar o que é seu. Que abuso! Seria como ter uma casa e não poder fazer obras.
O que caracteriza os liberais portugueses não é tanto o serem queques mas antes serem os mais incoerentes do espetro político. Liberais no que lhes interessa, ferozes opositores da propriedade privada e da liberdade quando não lhes interessa. A incoerência é sempre sintoma quer de oportunismo hipócrita quer de ignorância profunda. Em alguns casos mais infelizes também se pode contrair as duas doenças em simultâneo.
Olhando de outra perspetiva podemos ver que o direito de propriedade deve ter limites e que mesmo no tempo em que ninguém era comunista, nem Karl Marx nascera, já o bom Rei Dom Fernando mandou publicar e cumprir a Lei da Sesmarias que previa a expropriação das propriedades agrícolas devolutas. Expropriação, vejam bem, sem indemnização.
Seria Dom Fernando um precursor de Marx? Ou um Lenine avant la lettre? Teria sido na obra do nosso Rei que o alemão se inspirou? Será a Lei das Sesmarias uma versão medieval do Manifesto Comunista? Seria o Portugal monárquico do século XIV no fundo uma república soviética disfarçada? Será necessário alterar o currículo escolar para que as crianças não aprendam estas ideias perigosas? Eis o que pensam e dizem os melhores e mais brilhantes intelectuais liberais portugueses. Profundo e rigoroso. Uma revolução no pensamento histórico.
Na verdade a propriedade privada deve ter e tem limites consagrados pela Lei de todos os Estados, mesmo os mais liberais. O mais óbvio é que não pode ser usada para infligir danos a terceiros. Mas existem outros limites incluindo o dever de que seja usada em prol do bem comum. Por isso o arrendamento compulsivo é perfeitamente compatível com o direito à propriedade privada como também o é a expropriação para fins públicos relevantes (como por exemplo a construção de uma estrada, de um hospital ou um quartel).
Tanto barulho para nada, apenas para alardear incoerência e falta de senso. É pena que os nossos políticos em vez de discutir a substância das políticas percam o seu tempo a dar de si próprios uma triste figura. Mesmo sem serem cavaleiros andaluzes tardios e apenas conseguirem vestir as vestes do anafado acompanhante.