Óscar Afonso, Expresso online

Infelizmente, não se vislumbram, na proposta de OE2023, medidas que assegurem a correta atribuição de fundos, e que acelerem a execução e o impacto económico quer do PRR, quer do Portugal 2030

A propósito da Proposta de Orçamento de Estado para 2023 (OE2023), assuma-se que o cenário macroeconómico que o sustenta é realista.

Em princípio não é, assumindo como mais atual e completo o cenário do FMI (que faz projeções para o PIB mundial num grande número de economias). De acordo com o FMI, o crescimento da economia portuguesa não deve ir sequer além de 0,7% em 2023 (quase metade dos 1,3% previstos pelo governo) e que a taxa de inflação deverá ficar nos 4,7% (face a 4,0% nos números do governo, o que torna as suas projeções de consumo e de PIB ainda mais otimistas).

Por outro lado, tendo em conta que o Ministério das Finanças usou as previsões anteriores do FMI no enquadramento do seu próprio cenário (tal como o fez o Conselho de Finanças Públicas no seu parecer sobre o cenário do Orçamento), afigura-se bastante estranho que o Primeiro-Ministro António Costa tenha vindo tentar descredibilizar estas projeções mais recentes do FMI, apenas porque não lhe são favoráveis. Não faz sentido comparar o acerto de projeções de crescimento anteriores porque o contexto é muito diferente, com uma inflação elevada e menos ajuda do consumo para superar as estimativas do PIB, o que torna as recentes projeções do FMI mais realistas, como referido.

Mas, ok, vamos ser “anjinhos” e assumir que vai tudo ocorrer como o governo prevê.

Entre as medidas mais marcantes do OE2023, destaque-se a proposta de:

(i) redução do IRC para as empresas que aumentem as remunerações em 4,8%, mas condicional a vários requisitos que tornam a medida menos atrativa e passível de se concretizar;

(ii) aumento de pensões até 4,43% para 2023, quando, de acordo com a lei em vigor, deveria ser 8%, significando que, mesmo as pensões com aumento máximo em 2023, vão ser penalizadas a partir de 2024 porque a base sobre a qual assentarão os novos aumentos passa a ser irremediavelmente inferior;

(iii) atualização dos escalões de IRS em 5,1%, o que é manifestamente inferior aos quase 8% de taxa de inflação esperados este ano, em que os escalões não vão ser atualizados, mais 4% de inflação em 2023 seguindo o cenário do governo, pelo que os agregados familiares serão brindados com um aumento da carga fiscal nos acréscimos de rendimento: ao contrário do que a propaganda dissemina, as famílias serão, portanto, presenteadas com mais austeridade;

(iv) aumento salarial de 3,9% no sector público, oscilando entre 8% nos salários mais baixos e 2% nos restantes, com um mínimo de cerca de 52 euros por trabalhador. No setor privado, o Acordo de Médio Prazo de Melhoria de Rendimentos, Salários e Competitividade prevê um aumento de 5,1% em função das medidas previstas, mas trata-se de uma progressão voluntária, a que não ajuda a sinalização de uma progressão inferior dada no setor público (3,9%).

Assim, independentemente do sector, após uma enorme perda de poder de compra em 2022 (recorde-se que, na função pública, porque o aumento dos salários foi de apenas 0,9%, há a perda de um salário), serão poucos os trabalhadores a ter uma mitigação dessa perda e muitos irão perder novamente rendimento em termos reais em 2023, mesmo assumindo o cenário de uma inflação de 4% do governo, sendo que, no caso dos pensionistas, são esperadas perdas permanentes de rendimento a partir de 2024 pelo não cumprimento da lei. A perda de poder de compra será ainda maior usando cenários de inflação mais alta, como o do FMI (4,7%) ou mesmo o do Conselho de Finanças Públicas (5,1%), que se me afiguram mais realistas no atual contexto.

A propósito do ponto (iv), acima, os exíguos aumentos salariais dão-nos ainda dois importantes sinais. De acordo com o governo, os aumentos visam evitar uma espiral inflacionista. Mas, se assim é, os aumentos no sector público poderiam ser superiores, porque têm menor impacto nos preços dos bens e serviços transacionados, logo na taxa de inflação. Por outro lado, ao penalizar assumidamente o poder de compra dos trabalhadores mais qualificados (com aumentos de apenas 2% face a 4% de inflação prevista), cujos salários já são os que pior comparam com o setor privado (explicando a dificuldade de retenção de quadros no setor público), o governo informa-nos que ainda há espaço para uma maior degradação da Saúde, da Educação, da Justiça e de outros importantes serviços públicos.

Então o OE2023 não tem nada de positivo? Tem. É de saudar a queda do peso da dívida pública no PIB, sobretudo no contexto atual de rápida subida das taxas de juro e tendo presente que, no seio da União Europeia (UE), Portugal é um dos mais endividados – o 3º com peso mais elevado em 2021. É, pois, importante baixar esse rácio para valores mais comportáveis, implicando um menor rácio de juros da dívida pública. Devemos, por isso, ver como positiva a previsão de uma redução do rácio para 110,8% do PIB em 2023 – após 115,0% em 2022, 125,5% em 2021 e um máximo de 134,9% em 2020.

Porém, a agressividade do ajustamento imposto pelo governo é fortemente penalizadora para empresas e famílias. Depois da austeridade imposta aos trabalhadores em 2022 e mesmo quando as regras orçamentais da UE estão suspensas desde 2020 e até 2023 (prevendo-se que sejam retomadas em 2024), incluindo o limite de 3% do peso do défice no PIB, o governo socialista, que outrora se queixou da agressividade do ajustamento anterior, induzido pelos desequilíbrios impostos pela sua governação, vem agora, num cenário muitíssimo mais favorável – com um défice recomendável, taxas de juros a aumentar mas razoavelmente baixas e um sistema financeiro robustecido – impor ainda mais agressividade no ajustamento.

Na altura do programa de ajustamento imposto pela Troika, o Partido Socialista repetiu até à exaustão a desnecessidade do ter “ido para além da Troika”. Perante esse comportamento, quem imaginaria que agora, numa situação deveras muito mais favorável, tivesse começado logo a cumprir as regras em 2021, ao contrário da maioria dos países da UE – 15 em 27 países da UE não o fizeram nesse ano –, tendo registado um défice significativamente inferior à média europeia nesse ano (-2,9%). E, em 2022 e 2023, continuando a fazer “tábua rasa” do que criticava, o governo socialista continuou e continuará a ir além do exigido, sacrificando fortemente empresas e famílias, pois prevê que o saldo orçamental continue a melhorar, passando para -1,9% e -0,9%, respetivamente, quando seriam permitidos valores abaixo de -3% ou até mais, dado que, como já disse, as regras orçamentais estão suspensas. Este governo transfere, pois, para empresas e famílias todo o sacrifício, mais do que revertendo as reversões que fez, depois de obrigar os portugueses a pagar os disparates no Banif, no Novo Banco e na TAP. E assim se explica a produção de pobres.

Se fica claramente evidenciado que o governo socialista poderia ter ido mais longe no apoio à economia durante a pandemia, mesmo tendo em conta o rácio de dívida relativamente elevado – como, aliás, o fizeram outros países com rácios também elevados –, fica igualmente claro que também agora poderia ser socialmente mais justo. Efetivamente, seria desejável que o governo fosse mais sério, mais sensível aos portugueses mais vulneráveis, e que atendesse mais ao médio e longo prazo, propondo um melhor equilíbrio entre, por um lado, apoios a empresas e famílias e, por outro lado, redução do défice e dívida públicos numa perspetiva de curto, médio e longo prazos.

Considero, pois, que há atualmente margem para uma expressiva redução estrutural da carga fiscal sobre as empresas e as famílias. A redução de impostos ajudaria a aliviar a subida exponencial de custos para as empresas e a perda de poder de compra das famílias, reforçada com medidas adicionais específicas e decisivas para minorar situações de maior vulnerabilidade nas empresas (com realce para as mais intensivas em energia) e nas famílias, sobretudo as mais pobres, que sofrem sempre relativamente mais com a inflação. Os apoios mais expressivos às empresas e às famílias teriam de ser entendidos como um investimento, tendo em vista a potenciação do investimento e a retenção de talento e, assim, a elevação da capacidade produtiva e do crescimento económico potencial, melhorando, em simultâneo, a sustentabilidade da dívida a médio e longo prazos, ainda que à custa de um eventual maior rácio de dívida no curto prazo.

Mas, porque é então tão egoísta o governo? Porque está “borrado de medo” com o aumento das taxas de juro; porque, apesar de se dizer socialista, faz parte da sua génese ser insensível; e, porque não tendo uma visão estratégica para o país, olha exclusivamente para o curto prazo, equilibrando o dia-a-dia e remediando o imediato, pensando que, ao sobreviver em cada momento, se irá perpetuar a longo prazo, quando o que acontecerá é que, a dada altura, deixará de ter condições para governar, incluindo por falta de trabalhadores qualificados, por não investir na sua retenção e atração.

Então qual deveria ser o ajustamento do peso da dívida no PIB? A meu ver, o que conseguisse posicionar o país dentro da condicionalidade de ajuda do Instrumento de Proteção de Transmissão da Política Monetária (IPTPM) anunciado em julho pelo BCE, que poderá comprar títulos de dívida pública em países com uma deterioração das condições de financiamento não motivada pela deterioração dos fundamentais, sem sacrificar em demasia empresas e famílias. As condições de ajuda no contexto do IPTPM incluem:

  1. o cumprimento com as regras orçamentais da UE e uma dívida pública sustentável,
  2. ausência de desequilíbrios macroeconómicos severos a execução dos compromissos assumidos no Semestre Europeu e no Mecanismo de Recuperação e Resiliência.

É à luz destas duas condições que o OE2013 deveria ter sido construído.

Sobre o cumprimento das regras orçamentais e a sustentabilidade da dívida – isto é, sobre o ponto (1) – já praticamente tudo foi dito nesta crónica, com o governo socialista “ir além do Pacto de Estabilidade”, quando antes criticava o “ir além da Troika”, com a grande diferença que, nessa altura, havia uma herança catastrófica a vencer – em particular, um défice de 11%, taxas de juros elevadas, um sistema financeiro arruinado, e ausência de inflação que ajudasse. Ora é muito bem sabido que períodos de inflação ajudam a um ajustamento mais rápido das contas públicas se a atualização das despesas públicas pela inflação – nomeadamente salários de funcionário públicos e pensões – for inferior, em média, ao aumento de receitas fiscais por via da subida dos preços.

Na situação portuguesa é certamente aconselhável seguir esse preceito, de modo a reduzir o peso da dívida no PIB e evitar uma espiral inflacionista. No entanto, como também já referi, há margem para um equilíbrio mais virtuoso, a nível conjuntural e estrutural, na distribuição desse “dividendo da inflação” (na ótica das contas públicas), sobretudo por via de uma redução estrutural da carga fiscal (num máximo histórico, levando a um dos valores mais altos a nível europeu de esforço fiscal, que relativiza a carga fiscal pelo nível de vida), tanto para as empresas, como para as famílias, pois os atuais níveis de fiscalidade penalizam a atração e retenção de investimento e de talento. Ou seja, o crescimento das receitas fiscais em 2022 e 2023 por via da inflação deve também ser aproveitado como uma oportunidade para reduzir estruturalmente a carga fiscal.

O cenário macroeconómico do Governo prevê uma redução do crescimento económico para 1,3% (após 6,7% em 2022), enquanto a inflação baixa, mas mantém-se ainda elevada (4%, valor que se pode considerar otimista, como já referido). Ou seja, continuará a haver um “dividendo de inflação” (para as contas públicas) significativo em 2023, que deve ser redistribuído por todos – estado, empresas e famílias – e entre as gerações presentes e as futuras. Em particular, o governo deverá fazer a sua parte e aproveitar os investimentos previstos em digitalização para melhorar os serviços públicos consumindo menos recursos, de modo que, no final, tenhamos contas públicas mais sustentáveis e compatíveis com uma economia mais dinâmica, indo de encontro às condições de apoio do BCE nos mercados de dívida.

Relativamente ao ponto (2), que remete para a necessidade de ausência de desequilíbrios macroeconómicos severos e para a execução dos compromissos assumidos no Semestre Europeu e no Mecanismo de Recuperação e Resiliência, cumpre dizer que o OE2023 deveria pautar-se por uma maior alocação de verbas do PRR às empresas, geradoras de riqueza, pelo que eventuais reprogramações de verbas – mais prováveis face à inflação e ao forte atraso de implementação, que poderão tornar inviáveis alguns investimentos – deverão fazer elevar essa alocação, aumentando o impacto económico estrutural.

A execução dos atrasados investimentos e reformas do PRR, bem como os investimentos do Portugal 2030 – onde ainda falta a necessária regulamentação para entrar em funcionamento – são instrumentais para os compromissos do Semestre Europeu e para a redução de desequilíbrios macroeconómicos que ainda persistem, onde se realçam os elevados níveis de dívida pública, privada e externa, num contexto de baixo crescimento da produtividade. O aumento da produtividade – que deve ser a prioridade de alocação do montante elevado e irrepetível de fundos europeus à nossa disposição nos próximos anos – é fundamental para a elevação do potencial de crescimento económico e a redução sustentável do endividamento, incluindo o público. Espera-se ainda que os critérios de atribuição de fundos se pautem pela capacidade de geração de riqueza.

Ora, infelizmente, não se vislumbram, na Proposta de OE2023, medidas que assegurem a correta atribuição de fundos, e que acelerem a execução e o impacto económico quer do PRR, quer do Portugal 2030.