Marcus Braga, Jornal i online
Para se mitigar a corrupção é preciso entender a sua natureza, seu contexto e mais ainda, como ela é percebida como problema pela sociedade
Se os tubarões fossem homens, conjecturava o escritor alemão Bertolt Brecht. Mas, e se os governos fossem casas, e os eventos de corrupção fossem janelas? Penso que nós teríamos nas janelas de frente, a vista de todos que passam pelas ruas, os desvios derivados de compras e contratações governamentais. Mas, nem só de janelas defronte a rua vive uma casa. Para o quintal que existe nos fundos, outras janelas se abrem, pouco vistas pelos pedestres que caminham pelo bairro, mas tão importantes quanto as janelas que se abrem para as avenidas.
As despesas públicas, nas tipologias do superfaturamento, na compra de coisas despropositadas e ainda, no pagamento de bens e serviços que não foram entregues, comporiam as três janelas de frente, iluminadas pelo sol da transparência dada aos orçamentos, e que se tornam visíveis pelos avanços nos bancos de preços governamentais propiciados pela Tecnologia da Informação, que fazem das compras e das contratações de serviços cada vez mais auditáveis pelos cidadãos, que podem comparar preços e cruzar informações.
Apesar do volume de escândalos de corrupção envolvendo a aplicação dos recursos do orçamento nos mercados, existem outras janelas desse fenômeno que se fazem ocultas, esquecidas do senso comum, e que trazem prejuízos tão grandes quanto as contratações, que tem como mazelas: o desvio de finalidade e o ônus excessivo dos processos viciados. Mas ao mesmo tempo, geram impacto na imprensa pela facilidade de se verificar o quantitativo desviado por compras fraudadas ou superfaturadas, exaltando-se nas peças jornalísticas cifras enormes, que para fins didáticos são comparadas a construção de casas populares ou a distribuição de cestas básicas, para se dimensionar o prejuízo resultante às políticas públicas.
Mas, pelos fundos também o ladrão invade a casa. A primeira janela dos fundos é a gestão dos governos na arrecadação de receita e na concessão de subsídios. O recurso que não entra no orçamento é muito mais difícil de ser acompanhado e controlado do que aquele que é albergado nas contas públicas formalmente e pode se converter em despesa. A sonegação é uma das faces da corrupção de difícil detecção, pois envolve estimativas de quanto deveria ser arrecadado frente ao efetivamente recebido.
Da mesma forma, a concessão de subsídios pautados por critérios de estímulo à economia tem seus riscos invisíveis, pois são suportados por estudos de difícil aferição, e após a concessão de tais subsídios, é difícil se relacionar as externalidades positivas com as respectivas medidas de isenção fiscal, e pode esse benefício ser motivado por favorecimentos à agentes do mercado, com possíveis benefícios indevidos para os agentes públicos.
A segunda janela dessa casa é a atuação dos governos na atividade regulatória em relação aos mercados, atuação essa que dá poder aos governos de normatizar relações em regras abstratas, e ainda, aplicar multas e afastar agentes do mercado. Um poder grandioso dos governos, que permite em complexos mercados o favorecimento de determinados atores em relação a outros pela edição de normas enviesadas, ou ainda, afastar players importantes ou aplicar multas que podem ser objeto de negociações escusas no perdão das penalidades.
Passa, de certa forma, sem alarde essa janela da corrupção relacionada a regulação, pois são assuntos extremamente técnicos, e que não conseguem despertar a atenção da imprensa, por ser de difícil percepção nas narrativas desse tipo de corrupção. A contratação superfaturada repete a lógica cotidiana dos cidadãos que vão ao comércio, mas as ações regulatórias, ainda mais em mercados específicos, são de difícil percepção, inclusive nos prejuízos aos consumidores e a ordem econômica.
A terceira janela de nossa metáfora é a corrupção relacionada a gestão pelos governos do patrimônio público, em especial terrenos e prédios. Alienações a preço inferior ao mercado, permutas leoninas em relação ao privado, doações desnecessárias sob o manto de estímulo a ação social, desapropriações superfaturadas para a construção de aparelhos públicos. Por ser muito técnica e de difícil comparação dos valores praticados, por vezes se torna difícil a detecção de ações corruptas, seja pelo cidadão comum, e até por órgãos especializados no ofício anticorrupção.
A visão gerencialista de que o Estado precisa se desfazer de seus bens imóveis, enxergando estes apenas como um custo de manutenção, ignorando as peculiaridades do arranjo das políticas públicas, resulta em movimentos de alienação e arrendamento desses bens, por vezes, em condições pouco vantajosas para os governos, perdendo oportunidades de se obter receitas consideráveis.
A presente discussão é interessante para aqueles que labutam na seara anticorrupção, sejam os profissionais dos órgãos especializados, sejam os movimentos sociais, jornalistas e estudiosos, pois traz uma visão integral do fenômeno da corrupção, olhando a casa para além de suas janelas de frente para a rua. Para se mitigar a corrupção é preciso entender a sua natureza, seu contexto e mais ainda, como ela é percebida como problema pela sociedade. Somente assim será possível se construir soluções efetivas e sustentáveis. Para se evitar ladrões, todas as janelas precisam estar bem fechadas.