António João Maia, Jornal i online

A denúncia deve ser apresentada em forma e local adequados para que haja o devido tratamento e esclarecimento

Escolhi propositadamente um título provocador para esta crónica. Tenho plena consciência dos riscos que corro, mas creio que é importante – e até necessário! – contribuir, já desde início, para afastar alguns possíveis fantasmas que se possam levantar nalgumas mentes mais pessimistas a propósito da adoção do recente quadro normativo que vem tornar obrigatória a existência de canais de denúncia interna nas organizações e de medidas de proteção dos denunciantes enquanto instrumentos de despiste de situações de fraude e corrupção.

Efetivamente, e a propósito de denúncias, pegando na segunda parte da questão, ainda temos muito presente no nosso subconsciente coletivo – uma espécie de marca d´água do século XX português – uma certa ideia de um obscuro e tenebroso estilo pidesco de funcionamento do regime político pré 74. Ele alimentava-se muito de uma poderosa rede de “bufos”, disseminada em todas as áreas e setores da sociedade, que (muitas vezes a troco de uns míseros tostões para enganar a miséria da vida, ou simplesmente porque não se gostava do colega de trabalho, ou ainda para afastar a concorrência no negócio ou na promoçãozinha) fazia a vida negra de uns e outros através de denúncias, muitas vezes de forma anónima, sem grande ou nenhum fundamento, que eram apresentadas às autoridades policiais de um sistema e modelo de governação política que assentava precisamente no controlo e condicionamento das liberdades do povo, e que muitas vezes dava a matéria denunciada como certa e válida para condicionar e reprimir aqueles que eram denunciados, simplesmente porque dava jeito à subsistência do próprio sistema e dos seus líderes, como é descrito por diversos autores que se têm dedicado à análise e estudo do tema, como por exemplo Alexandre Manuel, Rogério Carapinha & Dias Neves (coord) (1974) PIDE – a história de repressão, Editora Jornal do Fundão, ou, mais recentemente, Irene Pimentel (2007), A história da PIDE, Círculo de Leitores, ou ainda através do retrato de Francisco Moita Flores em Os cães de Salazar, romance editado em 2020 pela Casa das Letras.

Regressando novamente à questão que suscito a mim próprio no título da crónica, nomeadamente na primeira parte, afirmo já, sem reservas, que concordo por inteiro com o pressuposto e com os propósitos que esta medida legislativa, que entrou recentemente em vigor (no passado dia18 de junho), nos apresenta: a obrigação das entidades (públicas e privadas, com 50 ou mais trabalhadores) disporem de canais de denúncia próprios como forma de potenciar o despiste de situações de fraude e corrupção que nelas ocorram ou em que estejam envolvidas, e que, de outro modo, não chegariam nunca ao conhecimento de nenhuma instância de controlo, que o mesmo será afirmar que não seriam objeto de nenhuma investigação, nem, muito menos, de qualquer punição.

Efetivamente, como referimos anteriormente, por exemplo em Os canais de denúncia como medida de desocultação da fraude e da corrupção – a diretiva europeia, a fraude e a corrupção são realidades com uma natureza tendencialmente oculta, na medida em que aqueles que nelas se envolvem adotam cuidados preventivos de grande frieza, calculismo e racionalidade, com o propósito simples, natural e óbvio, de não se deixarem apanhar e, se possível, de preservarem intactas as suas fontes ilícitas de enriquecimento. E fazem-no com dois grandes cuidados: ocultando as suas práticas (de modo a reduzirem a probabilidade de se tornarem suspeitos aos olhos de terceiros e de ficarem à mercê de posterior denúncia), e destruindo as provas correspondentes (para não serem punidos, caso sejam objeto de uma eventual suspeição, denúncia ou investigação).

A diploma que agora entrou em vigor (Lei n.º 93/2021, de 20 de junho que estabelece o Regime Geral de Proteção dos Denunciantes – RGPD – e que transpõe a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União) é de importância inquestionável!

Reconhece que a fraude, a corrupção e as irregularidades em geral na sociedade e nas organizações são fenómenos que provocam danos de natureza e alcances diversos. Sobre a coerência e validade dos valores da ética enquanto referenciais de integridade nas sociedades. Sobre a confiança dos indivíduos no cumprimento das expectativas nas suas relações sociais quotidianas. Sobre a credibilidade das instituições e o reforço da relação de confiança junto dos cidadãos, dos clientes e também da concorrência, no caso do setor privado. Sobre a economia e a preservação do património material das organizações em geral. Enfim, sobre a massa de que se fazem as sociedades e se alimenta a sua coesão.

Este quadro normativo vem de certa forma reconhecer e reforçar, através da regulamentação, uma componente que sempre se revelou de grande importância no despiste de irregularidades de fraude e de corrupção. O denunciante e a denúncia. O denunciante, aquele que exercendo funções no interior da organização ou que de algum modo tenha contacto com a sua ação (um cliente, um utente, etc.) e que por essa via tenha conhecimento (por testemunhar um ato, uma conversa, uma reunião, ou por ter sido pressionado, ou mesmo por ter participado nos próprios factos, etc.) de situações de fraude e corrupção que importe conhecer para que haja consequências.

O denunciante (o mensageiro) é uma peça de importância fundamental para se despoletar uma investigação. Mas sendo ou podendo ser ele parte da organização, importa que seja protegido, sob pena de não haver denúncia nenhuma. Estamos assim perante medidas potenciadoras da motivação do denunciante para apresentar a sua denúncia.

Quanto à denúncia (a mensagem, o reporte dos elementos factuais sob suspeita), deve ser apresentada em forma e local adequados (os canais de denúncia, agora formalizados) para que haja o devido tratamento e esclarecimento. Importa recordar que uma denúncia não é necessariamente uma verdade, e que por isso será sempre necessária a realização de tarefas adequadas de esclarecimento, investigação e demonstração.

A necessidade de se regulamentar a obrigatoriedade da existência de canais de denúncia, sobretudo internamente nas organizações de média e grande dimensão, deriva essencialmente de duas grandes ordens de razões: por um lado, na medida em que qualquer organização está naturalmente exposta à possibilidade de ser palco ou vítima de fraude e corrupção, uma vez que nela possam exercer atividades funcionais – em qualquer posição hierárquica e nível de responsabilidade – sujeitos menos íntegros. Por outro lado, porque, sem estes formalismos, as denúncias internas, anónimas ou de autoria identificada, ficariam sempre expostas ao risco de sucesso reduzido, nomeadamente por vida do livre-arbítrio decisório de quem a recebia quanto à promoção ou não promoção do seu adequado esclarecimento.

O quadro normativo agora adotado inclui medidas muito concretas relativamente a estas duas componentes:

Quanto à proteção do denunciante, através da concessão da possibilidade de apresentar a sua denúncia sob forma anónima, ou, caso opte por se identificar, a garantia de que a sua identidade é mantida sob reserva (sucedendo o mesmo relativamente aos denunciados – a presunção de inocência é um princípio fundamental inquestionável!), e ainda a garantia de não ser objeto de retaliações – embora saibamos que neste particular existe sempre um espaço, que não é desprezível nem pode ser ignorado, entre uma prescrição legal e o seu efetivo cumprimento. Por outras palavras, como diz sabiamente o povo, “há muitas maneiras de matar pulgas”. Desde ponto de vista, até pelos elementos que se conhecem do perfil dos denunciantes em Portugal, como tem sido revelado por exemplo pelos relatórios do Conselho de Prevenção da Corrupção, o mais provável seja que os denunciantes acabem por optar na sua maioria pelo anonimato como forma de proteção mais adequada.

Quanto à matéria denunciada, o regime legal prevê, de entre outros, o dever de reserva e a garantia do afastamento de conflitos de interesses por todos aqueles que tenham de a conhecer e trabalhar no sentido do seu esclarecimento e da tomada das decisões a que haja lugar, estabelecendo inclusivamente prazos para a realização destas tarefas.

 Efetivamente, a experiência da investigação criminal diz-nos que a grande maioria dos inquéritos se inicia a partir de denúncias, anónimas e não anónimas, que são apresentadas às autoridades – polícias, Ministério Público e tribunais. E é a partir da matéria apresentada nessas denúncias que se realiza o esforço da investigação tendo em vista ao esclarecimento dos factos e, em caso efetivo de irregularidade, de recolha das provas indiciadoras, da identificação dos correspondentes autores e do seu grau de culpa.

O presente quadro normativo reconhece e reforça a importância de quem denúncia atos de natureza fraudulenta e de corrupção nas organizações.

A finalizar, e como forma de reduzir a tentação dos denunciantes e das denúncias anónimas de má-fé (dos “bufos”, que sempre existirão), cremos, até pela experiência do tratamento das denúncias em investigação criminal, que um canal de denuncias interno numa organização requeira que cada denunciante, independentemente de se identificar ou não, apresente elementos como os seguintes:

1 – Qual a matéria / factualidade denunciada (descrição circunstanciada dos factos objeto da denúncia);

2 – Quando tiveram ou irão ter lugar os factos (indicação sobre se os factos já ocorreram, se estão a ocorrer, ou se irão ainda irão ocorrer, e, em qualquer circunstância, em que datas e horas);

3 – Quem está envolvido nos factos (indicação da(s) identidade(s) e funções / cargos das pessoas envolvidas);

4 – Em que departamento(s) / unidade(s) orgânica(s) ocorreram, estão a ocorrer ou irão ocorrer os factos;

5 – Como teve conhecimento dos factos (indicação sobre se os testemunhou (viu ou ouviu) ou se lhe foram relatados por outra(s) pessoa(s). Neste caso, deve indicar quem seja(m) essa(s) pessoa(s) e como / onde possa(m) ser contactada(s));

6 – Quem mais conhece os factos (indicação da(s) identidade(s) e funções / cargos dessas pessoas);

7 – Onde podem ser colhidos elementos probatórios dos factos denunciados (indicação da localização de documentos e/ou outros elementos que comprovem os factos denunciados, se existirem);

8 – Possibilidade de o próprio denunciante anexar ficheiros com provas on indícios dos factos denunciados.

A finalizar, creio que estamos todos expectantes quanto ao efetivo modo de funcionamento e sobretudo quanto à eficácia do Regime Geral de Proteção dos Denunciantes, dos canais de denúncia nas organizações e das demais medidas agora previstas no Regime Geral de Prevenção da Corrupção.

Afinal, a realidade será – é sempre! – mais aquilo que quisermos que seja e que formos capazes de fazer em conjunto, do que as boas intenções de qualquer normativo sobre como deva ser.