Marcus Braga, Jornal i online

É preciso que a agenda anticorrupção seja na medida certa, customizada para a realidade de cada órgão ou política, com o mínimo de efeitos colaterais.

Não só Portugal tem novidades alvissareiras pela proposição de um pacote legislativo anticorrupção, fato ocorrido em dezembro de 2021. Outros países tem trazido discussões e propostas recentes no sentido de atuar em relação ao fenômeno da corrupção, com agendas, projetos normativos e a criação de órgãos específicos, destacando-se a iniciativa dos Estados Unidos da América, que pautou de forma veemente essa agenda, também no final de 2021.

Esse movimento suscita uma pergunta natural. É possível o incremento da prevenção e do combate à corrupção conviver com a necessária inovação da administração pública? Para haver accountability se terá naturalmente rigidez, ou essa abordagem comporta, de alguma forma, a autonomia e a flexibilidade, essenciais à boa governança? Um dilema que precisa ser objeto de considerações, em um mundo dinâmico, de restrições orçamentárias, organizado em rede e que precisa de soluções que tornem o Estado mais eficiente e focado no cidadão, uma das consequências da probidade.

Já adianto ao estimado leitor que o texto não entregará uma resposta concreta e pacificadora desse dilema. Mas, se propõe, humildemente, a discutir essa tensão. O importante é a mediação da demanda por salvaguardas que garantam a atuação eficiente da gestão, inclusive contra a corrupção, em relação a necessidade de se inovar no setor público, e com isso ser tolerante, em alguma medida, a determinadas falhas.

O fenômeno da corrupção é complexo e transcende a relação minimalista de agentes públicos no trato com os cidadãos, passando por relações com conglomerados de empresas de caráter transnacional, com a esfera política e o branqueamento de capitais dos recursos obtidos de forma ilícita, em uma cadeia de atores por vezes ocultos. Mas, a questão é que o receituário para dar conta dessa enfermidade termina por ter impactos sobre essa mesma gestão que se busca proteger.

Efeitos esses derivados da natureza das salvaguardas para se inibir a corrupção. Criam-se regulamentos, rotinas de verificação, instâncias de autorização, órgãos de inspeção, aumenta-se a punição, promove-se a transparência que induz ao debate público sobre aquelas transações. Em grande parte, essas medidas tradicionais da agenda anticorrupção inibem a autonomia dos agentes públicos, o que termina por reduzir a flexibilidade e capacidade de inovar dos gestores públicos e privados relacionados.

Mas, nesse sentido, cabe a questão: Por que inovar? Existe um mito da inovação como um fim, e não a percepção de que a inovação é um caminho para um serviço público mais eficiente e íntegro, na busca de soluções mais rápidas, baratas e que não tenham consequências éticas. Não há dúvida que o mundo atual, de tecnologia permeando todas as relações, exige uma pauta de inovação, inclusive nas atividades governamentais, mas é preciso encontram um lugar comum entre todas essas coisas, para que não se tenha uma inovação ensimesmada.

A inovação é uma roupa que cabe bem em alguns processos governamentais, mais do que em outros. A autonomia precisa ser contextualizada, sempre associada a uma accountability específica para aquela política pública, menos agressiva a esta, de forma que a oferta de serviços de saúde tem uma relação com a inovação e com a accountability diversa, quantitativa e qualitativamente, de uma política de incentivos à ciência e tecnologia.

A visão sobre o erro assume assim um outro tom. Os erros são tolerados por fazerem parte de um ciclo de tentativas no contexto da busca pela inovação, que promova a eficiência, e não pelo interesse pessoal de lograr vantagens ilícitas no trato com a coisa pública, o que caracteriza a corrupção. Eis o problema posto, a criação de medidas anticorrupção uniformes, sem olhar as peculiaridades de cada política pública, atento a em que medida essas ações protetivas afetam a  capacidade de inovar, bem como no que esta capacidade se relaciona com a eficiência dos serviços públicos.

A abordagem que dissocia a accountability do desenho da política, suas peculiaridades, riscos e objetivos, pode ter como consequências prejuízos não só a capacidade de inovar de uma política, mas também a própria potencialidade de inibir a corrupção. É preciso que a agenda anticorrupção seja na medida certa, customizada para a realidade de cada órgão ou política, com o mínimo de efeitos colaterais. Resumindo, é preciso se estudar a melhor forma de combater a corrupção, tendo em mente a política pública que está sendo protegida.

Sair disso pode resultar em grandes ações de impacto e de aplicação geral, por vezes ensimesmadas na ação do combate à corrupção, insuladas do contexto e padecendo de sustentabilidade, exatamente por terem esses efeitos deletérios na gestão pública e privada, que vão tornando esta mais onerosa, menos competitiva e com reduzida capacidade de promover o desenvolvimento social.

Combate e prevenção da corrupção não pode ser uma discussão somente dos atores relacionados ao controle governamental. É preciso que essa agenda entre nas arenas de discussão dos gestores públicos, dos empresários e da sociedade em suas diversas formas de organização, pois a corrupção é um problema que afeta a todos, e os remédios para a sua mitigação precisam ser compartilhados entre esses atores, sopesando os ônus e os bônus derivados.